Templo III
Na ladeira da sedução
quem começa a descida –
Sulamita ou Salomão,
Salomão ou Sulamita?
1.
Teu convite, Salomão,
anima o que é morto.
Contigo,
a tábua inerte,
a imóvel coreografia do mundo,
é
motor,
explosão e fôlego.
Aceito!
E entrego meu corpo.
Teu convite
vibra, vibra grave na memória.
Tua voz
fez dançar as tribos mudas,
e movimento e sentido deu
à vida — aos homens e seus passos.
Está aqui!
Te entregamos o canto.
Teu convite, Salomão,
é lei e exige presença.
Tua ordem
solidão e alegria entrelaça,
e dá timbre ao gesto,
rasgos em nervos e veias
e melodias do fio mais profundo.
Tua ordem faz o corpo cantar.
Agora! Ao
teu equilíbrio
está
entregue o desafio das cordas.
E teu convite é desafio também.
Que seja tua inércia e tua força
e tua harmonia.
Que seja a corda, o canto, o corpo.
Que seja a paixão
e o que mais oferecer consiga.
E teu convite, Salomão,
que quer mais
além de minha vida?
E começa Sulamita
a descer na sedução?
Na ladeira da sedução
quem começa a descida –
Sulamita ou Salomão,
Salomão ou Sulamita?
2.
Vê os edifícios,
Sulamita.
Nem sabes onde termina
aquilo que meu braço fez.
Ao redor desses pés,
deitam soltas
as pedras fundamentais
deste tempo.
Deitam maravilhas,
maravilhas, muralhas,
coliseus, cidades,
O Cristo! O Cristo que redime!
Trade centers,
arranha-céus,
pontes, carros, grandes corporações,
observatórios espaciais...
Viva o Rei Salomão!
Um grande empreendedor!
Todo o povo, Sulamita,
anseia sedento
um rei, um reino e um templo.
3.
Sulamita, olha para mim,
olha para
ti,
reconheces aqui este intento,
reconheces aqui o casamento?
... Todas as coisas
são canseiras,
tais que ninguém as
pode exprimir;
os olhos não se fartam
de ver,
nem se enchem os
ouvidos de ouvir ...
Apliquei meu coração
naquilo que então ouvi.
E vi o amor nascendo das águas profundas
com grande tormento entre os animais,
e vi a voz das ondas e as ondas da voz,
e, pasmem, vi as vozes conversarem por si mesmas;
as falas faiscavam como traços,
às vezes formavam desenhos,
e desenhos falavam e formavam
outras formas além de desenhos,
e falavam essas formas e entre
desenhos e formas falavam todos;
e forças emergiam desse falavreado,
forças aproximavam as ondas,
organizavam, coagulavam as vibrações,
e assim exprimiam um ínfimo som.
E vi o timbre do instinto
num puro equilíbrio geométrico,
como ornamento musical
desse desenho chamado fogo.
Apliquei meu coração
e vi o abraço de tudo,
de forças a formas, de fontes a falas,
como se duas grandes ondas,
no mesmo tornado, ondulassem um corpo.
E vi pequenos tornados
tragados pelos maiores,
e maiores tornados pequenos
ao sabor de suas danças,
de alguma coreografia,
um tanto primitiva.
Talvez chamem a isso paixão –
a dança dessas ondas serpentinas,
ondas quando congeladas
arrastam-se em forças passivas,
arrastam porque esperam
força maior que as dirija,
ondas que são os navios
de algum recôndito inteligir.
Eu vi tornados em tudo,
no ínfimo que o poema não vê,
no sublime que não alcança;
vi homens e mulheres surfando,
e povos desciam a ladeira
de uma potência que expande
e transcende o mar que é a própria origem.
4.
Apliquei meu coração
e vi, e ainda vejo
casamentos que não duram uma vida,
e vidas que não duram um casamento;
ainda vejo a noite gelada,
com fria fogueira,
antes da consciência do tempo.
Ainda me vejo! E fala meu peito
de um jeito sereno, de pura sabedoria,
ciência dos quatro cantos
desse templo.
Ainda vejo pequena Juno.
Não é dama que se case,
nem mulher que se despreze,
é quem nega a natureza
em busca de uma prece,
uma reza passageira
daquelas que não se esquece,
e pode esperar muitas vidas
até que essa força endureça,
e cristalize os véus e grinaldas,
o buquê e sua nobreza,
algumas coroas de flores
em galhos com frutos de ouro.
Até que essa força endureça
e descanse Santo Antônio;
até que essa força emudeça
e mais ouvir a ciência não possa;
até que essa força estremeça
as bases de um monumento
chamado casamento.
5.
Apliquei meu coração
e vi, e vejo, e verei
como a força vira forma,
a forma verdadeira
de uma órbita matriz
tornando e tornando em torno de si.
Verei um giro tão rápido
que se pode confundir
entre aquilo que morre
e o que paira ainda aqui,
entre aquilo que morre
e o que torna a luzir;
e verei na confusão
o impulso mais potente
com potência explodir;
irromper matéria dura
com a força de palavra,
irromper de massa bruta
com charme e fineza:
é a natureza
cultivando outra cultura!
Apliquei meu coração, Sulamita,
naquilo que então ouvi,
em meu peito, um incêndio,
entre as paredes infiltradas,
de um combustível que jamais intuí.
E segue Salomão
a ladeira já descida?
Na ladeira da sedução
quem começa a descida –
Sulamita ou Salomão,
Salomão ou Sulamita?
6.
O homem gritou o poder de morte,
a mulher dançou o poder de vida,
e quem de
nós é mais forte?
A fêmea dominou a planta,
o macho dominou o bicho,
e quem de
nós é mais digno?
É isto ou aquilo,
aquilo ou isto,
e força mais digna ou mais forte também morre.
Na ladeira da sedução
quem começa a descida –
Sulamita ou Salomão,
Salomão ou Sulamita?
Arabesco e flor: palavra e símbolo
A palavra arabesco designa um ornato de
origem árabe, no qual se entrelaçam linhas, ramagens, grinaldas, flores... É também, de acordo com o Dicionário Aurélio, o
mesmo que rabisco.
Encontramos
ainda a palavra arabesco no verbete ornamento do Dicionário Analógico ao lado de termos como florear, enflorar, embelezar, iluminar, conchear, enriquecer
e constelar.
O símbolo do
arabesco nos inspira a dizer que o
arabesco não é uma figuração: é um ritmo. O arabesco é
uma encantação, uma repetição indefinida do tema, uma transcrição da recitação
mental. Quando se torna um apoio da contemplação, permite que se escape à
condição temporal.
Podemos
discernir nos arabescos:
¿ Dois
elementos constantes – a interpretação da flora e a utilização ideal da linha.
¿ Dois
princípios – a aparente fantasia e a estrita geometria.
¿ Dois
procedimentos – o traço reto como um jato e o laço.
Os arabescos epigráficos combinam
grafia e sonoridade. Eles oferecem-se como um enigma a ser
decifrado, como um labirinto. O
artista que faz os arabescos busca ocultar e revelar ao mesmo tempo uma sentença
corânica e, assim, despertar simultaneamente a emoção de uma beleza e de uma verdade, que seriam acima de tudo um
compromisso com o longínquo.
É por tudo isso
que, buscando no Dicionário de Símbolos,
encontramos que o arabesco é o
símbolo do símbolo: revela velando e oculta desvelando.
Mas não podemos
fechar nosso dicionário sem uma rápida consulta à simbologia da flor. A floração é o retorno ao centro.
A flor mostrada por Buda a Mahakashyapa substituía qualquer palavra – a própria expressão do inexprimível.
Na civilização asteca, a
flor coroava o hieróglifo da prece. As
flores manifestavam a
diversidade do universo e expressavam
fases específicas das relações entre deuses e homens. A flor era a
medida dessas relações.
Templo II
Diziam no povoado
vendavais de confusões,
pois lá ninguém entendia
isto, que todos sentiam,
que é matéria de ciências,
isto, digno de filosofias –
o motor destas palavras –
isto, que todos sentiam
lá, no princípio da vida
a dois, lá, no mesmo ponto
em que o mundo foi único,
em que a noite foi fria;
e a brisa, talvez magia.
Língua materna
![]() |
A palavra mãe nas línguas indo-europeias (A aventura das línguas, de Hans J. Störig, p. 42) |
Nascemos fluentes
apenas na língua das lágrimas. Choramos alheios a qualquer
idioma. Vindos não sabendo sequer de onde, somos postos nesta Terra
como estrangeiros. Até que sejamos recebidos por
uma língua materna, até que dela recebamos um caráter próprio.
Ao longo da
vida, nossa língua materna vai nos nutrir de visões sobre o mundo em
que nos encontramos, quer seja esse mundo externo ou interno. Ela vai nos unir com
sua sintaxe, dar forma às nossas ideias, pôr sentido em nossos sentimentos. Com
ela poderemos diferenciar a parte do todo: conversaremos nossas próprias conversas,
conheceremos nossos próprios conhecimentos, rezaremos nossas próprias rezas, riremos
nossos próprios risos e continuaremos chorando nossos próprios choros.
Nascemos no Brasil, fomos recebidos pela língua portuguesa, tornamo-nos talvez os
únicos herdeiros da saudade na Terra.
A língua portuguesa pertence à
família das línguas indo-europeias. É filha do latim, língua-mãe da Europa. Não
do latim dos poetas clássicos e do clero. Mas sim do latim dos soldados,
mercadores, funcionários e colonos que chegaram à Lusitânia. Língua de caráter
grave, o português cruzou o oceano e desenvolveu um caráter mais brando, o que levou
Eça de Queiroz a dizer que, por aqui, fala-se português com açúcar.
Neste
segundo domingo de maio de 2013, dia das mães, mês
de Maria (a mãe do Verbo), Nossos Estudos Poéticos prestam
homenagem à língua portuguesa – nossa língua materna, mãe de seus falantes,
esposa de seus poetas. Que
seus filhos respeitem suas regras, seus esposos sejam fiéis a seus votos, e que ambos lhe tenham amor e devoção.
E que a saudade, este sentimento
que trazemos talvez de outras terras, esta palavra que um dia acabamos por
herdar de nossa língua materna, nos saiba grave e doce.
Templo I
1.
O casamento é real,
no entanto
é aquilo
que
passa,
mas também é
isto
que fica;
é real
e suas
paredes também
têm infiltrações;
no entanto,
também
se muda
de
casa.
2.
Passa o primeiro
beijo,
o ficar, o namoro passa,
passa o noivar;
(entretanto)
e
o casamento é
tudo isto
no mesmo lugar.
3.
Dizem que o pensamento
dura mais
que os corpos,
dizem
o mesmo
do sentimento,
mas
o que dizem
do casamento?
dura mais
que os corpos,
dizem
o mesmo
do sentimento,
mas
o que dizem
do casamento?
se
casar é
ampliar a casa?
ampliar a casa?
Casar é ampliar a casa,
ampliá-la para
caber mais corpos
na casa,
nos quartos, nos cômodos,
nos carros.
ampliá-la para
caber mais corpos
na casa,
nos quartos, nos cômodos,
nos carros.
Se
casar é
somar corpos, acumular
corpos
nas paredes,
e também somar
casas
mais amplas
ao patrimônio de casas
e corpos.
somar corpos, acumular
corpos
nas paredes,
e também somar
casas
mais amplas
ao patrimônio de casas
e corpos.
Casar é
unir somar ampliar
unir somar ampliar
até
que
dure
algo no fim.
Recitando Arabescos
João
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas
¿!
Fragilidade
Este verso, apenas um
arabesco
[...] não mais
que um
arabesco, apenas um arabesco
abraça as
coisas, sem reduzi-las.
Carlos
Drummond de Andrade, em A Rosa do Povo
¿!
Onze
Mas a flor está subindo, próxima,
Cheia de sutis arabescos.
Cecília
Meireles, em Doze Noturnos da
Holanda
Maiúscula Copperplate
Pela primeira
vez, todas as letras de uma
palavra estavam ligadas. Essa foi a inovação trazida pela Maiúscula Copperplate de acordo com
David Harris em A arte da Caligrafia.
A Copperplate é provavelmente a mais cursiva de todas as
caligrafias do abecedário
latino. A maior parte das letras pode ser construída com um único traço.
Estudemos as lições poéticas para que consigamos escrever com essa bela grafia:
¿ Ligar as letras sempre que possível fazendo com que
a ligação até a haste seja a mais alta possível.
¿ Não
juntar letras perto de suas bases.
¿ Tentar
deixar um nítido triângulo de espaço entre as letras.
¿ Todos os laços devem
relacionar-se proporcionalmente.
Na Copperplate, os laços normalmente acabam com uma espiral em fio e a haste da Maiúscula normalmente termina com
um botão.
A ansiosa solicitude pela nossa vida
25. Por isso vos digo: Não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo
que haveis de comer ou pelo que haveis de beber, nem quanto ao vosso corpo,
pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais que o mantimento, e o corpo mais que o vestido?
26. Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam
em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor
do que elas?
27. E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um
côvado à sua estatura?
28. E, quanto ao vestido, por que andais solícitos? Olhai para os
lírios do campo, como eles crescem: não trabalham nem fiam;
29. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se
vestiu como qualquer deles.
30. Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã
é lançada no forno, não vos vestirá
muito mais a vós, homens de pouca fé?
31. Não andeis pois inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que
beberemos, ou com que nos vestiremos?
32. (Porque todas estas coisas
os gentios procuram). De certo vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de
todas estas coisas.
33. Mas buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas
coisas vos serão acrescentadas.
34. Não vos inquieteis pois pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã
cuidará de si mesmo. Basta a cada dia
o seu mal.
S. Mateus, capítulo VI
– O Sermão da Montanha
O verbo ser
O verbo ser é um verbo de ligação. Sua missão gramatical é
ligar. O vínculo estabelecido pelo verbo ser exprime um aspecto
sob o qual se considera a qualidade atribuída ao sujeito. Esse aspecto é o da permanência.
O radical do
verbo ser sofre alterações que o
tornam inclassificável se considerarmos os critérios de regularidade e
irregularidade. O verbo ser não é nem regular nem irregular.
Na sua conjugação, há dois radicais diferentes – os verbos latinos sedere e
esse. Por isso, dizemos que o verbo ser é anômalo.
Somos
conduzidos aos conceitos acima quando buscamos o verbo ser pelas gramáticas de Bechara e Cegalla. Uma busca pelo verbo ser no Dicionário Latino-Português nos conduz aos seguintes verbetes e
palavras:
¿ Esse – presente infinitivo de Sum e Edo.
¿ Sum, esse – ser, existir,
viver, durar; estar; ir,
vir; acontecer, suceder; ser descendente, oriundo; valer, custar; pertencer a,
favorecer; ser para, servir de, causar;
bastar para.
¿ Edo (edere) – pôr fora, dar à luz, publicar em obra; mostrar; causar, cumprir, entoar; dizer, revelar, anunciar;
nomear, eleger, escolher; elevar.
¿ Sedere – assentar-se;
estar sentado (como autoridade); não sair do seu lugar; estar postado; ficar
imóvel, parar; ficar, permanecer, estabelecer-se, fixar-se, estar decidido; afundar-se, entrar, penetrar; descer, pousar;
acalmar-se, sossegar-se; estar à flor da terra, estar em planície; abater-se,
abaixar-se, deprimir-se;
montar a cavalo.
A ação do verbo ser é realizar uma
ligação que seja permanente.
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