Nadir e Letícia (por soleá)

1ª parte – Estudo de poemas por soleares (2006-2008)

        1 

1ª letra – Sol-posto

O sol cai pelo vale fundo
posto em ladeiras e alamedas
vira o bairro nadir do mundo

Raios solferinos escarpam
nuvens encarnadas e roxas
nuvens que solitárias zarpam

É a hora da soleá
Quem vier aprender a velha
lição das nuvens sofrerá

        2

1ª letra – Soleá da panela

Chia o silêncio da panela
de pressão. E grita a vizinha:
“que letra feia, Rafaela!

É da mamãe ou do mamão
que tá escrito aí? Esqueci
da beterraba no feijão!”

Come e vive pela beirada
esquecida às margens de tudo
indo do grito à voz calada

        3

1ª letra – Soleá do vassoureiro

“Olha a vassoura aí, freguesa!”
Grita o vendedor lá na rua
pegando todos de surpresa

Segue pela rua deserta:
“Olha a vassoura aí, freguesa!”
grita o vendedor sua oferta

Ninguém a vassoura queria
nem para varrer o quintal
nem para fazer bruxaria

        4

1ª letra – Soleá do tártaro

Ouço o barulho de uma fonte
fonte do esgoto entupido
vômito do tártaro urbano
borbulha guloso de lixo

        5

1ª letra – Soleá do mormaço

O mormaço arrasta o dia
e nada se desvencilhou do cansaço
do meu cansaço nada surgiu
não foi criado
nada ainda do cansaço
Nuvens movediças de chumbo
quanto mais eu as analiso
quanto mais eu as analiso
mais eu sinto que afundo

        6

1ª letra – Soleá das ciganas

As ciganas daqui são
andarilhas não do espaço mas do tempo
as andarilhas do espaço não
andam no tempo
no labirinto de tempos
E na noite que coagula
colhem rosas que plantei
colhem rosas que plantei
na encruzilhada rua

        7

1ª letra – Soleá do passar

Consumindo-me na tarde
Passando a roupa na fumaça de tudo
Suando na fumaça de tudo
Passando o sol
sobre o ruído da tábua
cá e lá o ferro a vapor
enquanto isso o café passa
enquanto isso o café passa
fresco no coador

        8

1ª letra – Soleá da xilografia

Pois então, xilomante, venha ler agora
soleares, mas venha lê-las fibra a fibra
por de topo, e fio e cor e salteado
o rigor e a firmeza bem escrita, venha
pra leitura profunda, jonda, baixa, morta
do meu fado gravado neste vão tablado
com sapatos de couro preto e muito usados

        9

1ª letra – Soleá da fila

Enfileirado e ao sol
o pobre vai ocupando seu lugar
na porta do banco
na porta da ong
na porta da igreja
na porta da escola
na porta do posto
ao sol e enfileirado
e com sua senha
o pobre vai se pondo
no seu devido lugar
na porta do mundo

        10

1ª letra – Soleá do jardim

A caridade sem evolução
é como a natureza sem Deus
A caridade só com merecimento
não é nem como a natureza só com arte
Esta caridade
é como um paisagismo
é como usar uma planta
é como usar um livro
é como usar um quadro
é como usar uma coreografia
só para decoração
Bonita, não bela
Útil, não essencial
Fogo, mas de artifício
Luz, mas artificial

      11

1ª letra – Soleá do destino

/Todo verdadeiro encontro é solitário/É preciso mergulhar para não entrar na onda// A solidão, na superfície, é um incômodo/A solidão, no fundo, é um encontro/A solidão faz encontrar o conselho nas profundas águas do coração/ Nada do que o meu coração sente é sublimado/ Pelo líquido estado do sangue e das lágrimas/ Tudo é passado//Todo verdadeiro encontro é unidade, é comunhão/É preciso mergulhar para que a onda não me leve\

      12

1ª letra – Soleá

A soleá é um baile de movimentos invisíveis que buscam o que está no fundo. Esse movimento que não aparece é a resistência. Quem a dança o faz com a intenção da dificuldade, com todas as suas entranhas e com todo seu peso. É a dança da Terra. A dança da experiência da solidão, do desengano e da transformação. São as três horas da tarde da sexta-feira da paixão. A dança da gravidade. A dança que atrai todos os males terrenos.

A dança que atrai todos os males terrenos para expô-los, para pô-los ao sol na descensão.


Para conhecer o estudo que levou a esse poema:
http://nossosestudospoeticos.blogspot.com/2011/08/nadir-e-leticia-sobre-flamenco.html

Para ler a 2ª parte - Estudo de poemas por alegrias:
http://nossosestudospoeticos.blogspot.com.br/2011/09/nadir-e-leticia.html