Nadir e Letícia: estudo de poemas por bailes flamencos

FLAMENCO

A ideia de escrever um poema flamenco surgiu dos seguintes versos de João Cabral: “A Andaluzia é de ouro e cobre, / mas nenhum dura mais que um dia: / se alternam, como em seu cantar / à ‘soleá’, segue a ‘alegria’”. Para a criação do poema também foram importantes seus Estudos para uma bailadora andaluza. E se ao invés disso eu escrevesse os estudos de um(a) bailaor(a) brasileiro(a)? Interessavam-me no flamenco os contrastes (de movimento, ritmo, sentimentos) e o seu vocabulário próprio. As questões que me fiz foram: 1) o poema pode ser, ao lado do cante, do baile e da guitarra, um dos elementos do flamenco? 2) qual é a diferença entre expressão e significação? Esta última pergunta se deve ao fato de eu ter ouvido que no cante, no baile e na guitarra a expressão era mais importante que o significado. Isso me inquietava um pouco.

BAILE

Dentro do flamenco, comecei a pensar no baile, pois era o que eu estudava. Duas coisas me chamavam a atenção. Primeiro a estrutura do baile – saída, chamada, letras, escobilla, subida e cierre. Segundo, o dançar as letras, parte do baile em que o bailaor dança acompanhando o cante.

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COREOGRAFIA

Parti então para a ideia de a palavra coreografia significar a escrita do corpo. Pensava, assim, nas oposições entre a coreografia e o improviso, os ensaios e a apresentação. Pensava também na distinção entre uma coreografia e uma sequência de passos.

DANÇA

“A dança não se faz apenas dançando, mas também pensando e sentindo: dançar é estar inteiro”. A frase é de Klauss Vianna, para quem a dança é um modo de existir. Lendo seu livro ampliei minha visão de baile flamenco para a visão de dança como forma de arte. Comecei também a pensar sobre as seguintes noções: corpo e respiração; ritmo e espaço; equilíbrio e flexibilidade; memória muscular, linguagem corporal, vocabulário gestual e consciência do gesto. Acredito, no entanto, que o que eu consegui extrair de mais importante da leitura foi a presença do sagrado e do espiritual na dança. Klauss Vianna escreveu muito sobre a necessidade de se encontrar a sua própria dança, uma dança cuja técnica estivesse ligada à vida cotidiana. Donde me veio uma pergunta: o poema poderia ser a minha dança?

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MOVIMENTO

Para Laban, a esquematização do conteúdo da dança em palavras não é possível. As palavras podem apenas descrever um movimento. Surge aqui um desafio: como escrever um poema flamenco a partir do baile sem descrever a dança? A dança literária é aquela cujo conteúdo pode ser descrito em resumo. Difere da dança que se baseia nos aspectos da natureza humana que antecedem a fala e as palavras (dança moderna) e das danças folclóricas tradicionais e nacionais, que não podem ter um resumo (dança abstrata). Meu problema era o fato de o flamenco ser uma dança étnica. Talvez a solução estivesse no exercício proposto por Laban – pensar por movimento em vez de pensar em palavras.

Ao escrever sobre a poesia do movimento, Laban ressalta que o ser humano durante longo período não foi capaz de descobrir a conexão entre seu pensamento-movimento e sua palavra-pensamento. “A dança usa o movimento como linguagem poética” afirma Laban. Outros temas de interesse: tempo, peso, fluência, posição e cnesfera (limites naturais do espaço pessoal no seio do qual nos movimentamos).

MOVIMENTO E PENSAMENTO

Depois de ler Laban, reencontrei algumas anotações antigas que eu tinha feito a partir da leitura dos pré-socráticos da coleção Os pensadores. De acordo com Nietzsche, “o ponto de partida de Demócrito é acreditar na realidade do movimento porque o pensamento é um movimento. O movimento existe porque eu penso e o pensamento tem realidade. Mas se há movimento, deve haver um espaço vazio, o que equivale a dizer que o ser é tão real quanto o não ser. Se o espaço é absolutamente pleno não pode haver movimento”. Como eu poderia pensar o movimento ou como meus pensamentos poderiam se mover em um poema flamenco?

MOVIMENTO E APRENDIZAGEM

Como a ideia inicial era fazer um poema flamenco que fosse também um estudo, algumas leituras sobre a importância do movimento para a aprendizagem foram bastante úteis. Em Flavell-Miller&Miller encontrei passagens sobre o fato de o movimento ser essencial para o desenvolvimento cognitivo dos bebês, pois os ajuda a construir o conceito de objeto bem como a diferenciar os seres que têm vida dos que não têm. Já a leitura de Carrilho foi enriquecedora por tratar das apraxias, ou seja, da desordem da realização de algum gesto ou ato motor que não pode ser justificada por anormalidades em canais sensoriais aferentes ou motores eferentes, na ausência de deterioração intelectual, déficit de atenção ou de compreensão. Problemas de linguagem e de conceito podem afetar nossos movimentos?

POEMA

Procurei, principalmente na literatura brasileira, poetas que tivessem escrito sobre flamenco e dança. Além de João Cabral, encontrei Murilo Mendes e Silvia Jacintho. Escrevi então Nadir e Letícia: estudos de poemas por bailes flamencos. Dividi o texto em duas partes. Primeiro a ‘soleá’ (solidão), depois as ‘alegrias’. Cada parte está dividida em doze poemas, um para cada tempo do compasso da ‘soleá’ e da ‘alegria’. Cada poema se divide em um número variável de letras totalizando noventa e duas. Estudei um pouco da métrica, da rima e das estrofes da ‘soleá’ e da ‘alegria’ para compor meus versos, além de buscar a minha própria forma.

Vou apresentar no fragmento Exercícios algumas das letras que eu escrevi com o título Nadir e Letícia, ciente de que isso impede o conhecimento da unidade do poema da mesma forma que uma visita rápida a alguns pontos turísticos não nos torna conhecedores de uma cidade. O critério de seleção das letras foi simples – trata-se da primeira letra de cada poema da primeira parte do texto e de sua correspondente na segunda parte do texto.

Leia Nadir e Letícia: http://nossosestudospoeticos.blogspot.com/2011/08/nadir-e-leticia.html