Na ladeira da sedução
quem começa a descida –
Sulamita ou Salomão,
Salomão ou Sulamita?
1.
Teu convite, Salomão,
anima o que é morto.
Contigo,
a tábua inerte,
a imóvel coreografia do mundo,
é
motor,
explosão e fôlego.
Aceito!
E entrego meu corpo.
Teu convite
vibra, vibra grave na memória.
Tua voz
fez dançar as tribos mudas,
e movimento e sentido deu
à vida — aos homens e seus passos.
Está aqui!
Te entregamos o canto.
Teu convite, Salomão,
é lei e exige presença.
Tua ordem
solidão e alegria entrelaça,
e dá timbre ao gesto,
rasgos em nervos e veias
e melodias do fio mais profundo.
Tua ordem faz o corpo cantar.
Agora! Ao
teu equilíbrio
está
entregue o desafio das cordas.
E teu convite é desafio também.
Que seja tua inércia e tua força
e tua harmonia.
Que seja a corda, o canto, o corpo.
Que seja a paixão
e o que mais oferecer consiga.
E teu convite, Salomão,
que quer mais
além de minha vida?
E começa Sulamita
a descer na sedução?
Na ladeira da sedução
quem começa a descida –
Sulamita ou Salomão,
Salomão ou Sulamita?
2.
Vê os edifícios,
Sulamita.
Nem sabes onde termina
aquilo que meu braço fez.
Ao redor desses pés,
deitam soltas
as pedras fundamentais
deste tempo.
Deitam maravilhas,
maravilhas, muralhas,
coliseus, cidades,
O Cristo! O Cristo que redime!
Trade centers,
arranha-céus,
pontes, carros, grandes corporações,
observatórios espaciais...
Viva o Rei Salomão!
Um grande empreendedor!
Todo o povo, Sulamita,
anseia sedento
um rei, um reino e um templo.
3.
Sulamita, olha para mim,
olha para
ti,
reconheces aqui este intento,
reconheces aqui o casamento?
... Todas as coisas
são canseiras,
tais que ninguém as
pode exprimir;
os olhos não se fartam
de ver,
nem se enchem os
ouvidos de ouvir ...
Apliquei meu coração
naquilo que então ouvi.
E vi o amor nascendo das águas profundas
com grande tormento entre os animais,
e vi a voz das ondas e as ondas da voz,
e, pasmem, vi as vozes conversarem por si mesmas;
as falas faiscavam como traços,
às vezes formavam desenhos,
e desenhos falavam e formavam
outras formas além de desenhos,
e falavam essas formas e entre
desenhos e formas falavam todos;
e forças emergiam desse falavreado,
forças aproximavam as ondas,
organizavam, coagulavam as vibrações,
e assim exprimiam um ínfimo som.
E vi o timbre do instinto
num puro equilíbrio geométrico,
como ornamento musical
desse desenho chamado fogo.
Apliquei meu coração
e vi o abraço de tudo,
de forças a formas, de fontes a falas,
como se duas grandes ondas,
no mesmo tornado, ondulassem um corpo.
E vi pequenos tornados
tragados pelos maiores,
e maiores tornados pequenos
ao sabor de suas danças,
de alguma coreografia,
um tanto primitiva.
Talvez chamem a isso paixão –
a dança dessas ondas serpentinas,
ondas quando congeladas
arrastam-se em forças passivas,
arrastam porque esperam
força maior que as dirija,
ondas que são os navios
de algum recôndito inteligir.
Eu vi tornados em tudo,
no ínfimo que o poema não vê,
no sublime que não alcança;
vi homens e mulheres surfando,
e povos desciam a ladeira
de uma potência que expande
e transcende o mar que é a própria origem.
4.
Apliquei meu coração
e vi, e ainda vejo
casamentos que não duram uma vida,
e vidas que não duram um casamento;
ainda vejo a noite gelada,
com fria fogueira,
antes da consciência do tempo.
Ainda me vejo! E fala meu peito
de um jeito sereno, de pura sabedoria,
ciência dos quatro cantos
desse templo.
Ainda vejo pequena Juno.
Não é dama que se case,
nem mulher que se despreze,
é quem nega a natureza
em busca de uma prece,
uma reza passageira
daquelas que não se esquece,
e pode esperar muitas vidas
até que essa força endureça,
e cristalize os véus e grinaldas,
o buquê e sua nobreza,
algumas coroas de flores
em galhos com frutos de ouro.
Até que essa força endureça
e descanse Santo Antônio;
até que essa força emudeça
e mais ouvir a ciência não possa;
até que essa força estremeça
as bases de um monumento
chamado casamento.
5.
Apliquei meu coração
e vi, e vejo, e verei
como a força vira forma,
a forma verdadeira
de uma órbita matriz
tornando e tornando em torno de si.
Verei um giro tão rápido
que se pode confundir
entre aquilo que morre
e o que paira ainda aqui,
entre aquilo que morre
e o que torna a luzir;
e verei na confusão
o impulso mais potente
com potência explodir;
irromper matéria dura
com a força de palavra,
irromper de massa bruta
com charme e fineza:
é a natureza
cultivando outra cultura!
Apliquei meu coração, Sulamita,
naquilo que então ouvi,
em meu peito, um incêndio,
entre as paredes infiltradas,
de um combustível que jamais intuí.
E segue Salomão
a ladeira já descida?
Na ladeira da sedução
quem começa a descida –
Sulamita ou Salomão,
Salomão ou Sulamita?
6.
O homem gritou o poder de morte,
a mulher dançou o poder de vida,
e quem de
nós é mais forte?
A fêmea dominou a planta,
o macho dominou o bicho,
e quem de
nós é mais digno?
É isto ou aquilo,
aquilo ou isto,
e força mais digna ou mais forte também morre.
Na ladeira da sedução
quem começa a descida –
Sulamita ou Salomão,
Salomão ou Sulamita?