Versos d’água: batismo

Cobre-te com os lençóis d’água/ Veste o manto da chuva/ Banha-te no mais profundo descanso


Livro das Mil e Uma Noites – Volume III (ramo egípcio, 2007)


Foi quando Sahrazad começou a falar sobre as ações. O que nos sucede é provocado por nossas próprias mãos (que não evitam a traição), língua (que não diz a verdade) e pés (que seguem as mãos e a língua).

Depois passou a falar sobre os motivos. O do afeto é o decoro. Do amor, a dádiva. Da castidade, o desvio do olhar. Do lucro, o esforço. Da aversão, a sabedoria. Da fraternidade, a afabilidade. Do abandono, a punição. Do ódio, a mentira. Do saber, a busca.

Falou sobre os interesses, que são diferentes dos motivos. Cada um sabe melhor do que o outro qual é o seu próprio interesse.

Falou sobre as circunstâncias em que as ações são feitas. Falou sobre a pressa, que não produz nenhum benefício se as coisas estão sob controle. Tudo que se faz com pressa não perdura.

Falou sobre as consequências, sobre a aflição e o arrependimento. Inúteis diante do que já foi feito.

E falou sobre a magia. Falou de aves que se transformavam em moças que pareciam luas e de geomantas que faziam a areia falar a sorte.

O rei Sahryiar, então, ouvindo a história do rei Sah Baht, pensou sobre o que ele mesmo estava fazendo: matando mulheres e meninas. Louvou a Deus em seu pensamento, pois ocupando-se da jovem Sahrazad, não continuava matando. Tirar a vida é uma enormidade! Ele considerou que se o rei Sab Baht perdoasse o seu vizir, também ele perdoaria Sahrazad.

E o rei continuou prestando atenção às palavras dela.


“Ó rei do tempo, esse círculo maior é o seu reino, e o círculo menor é o meu reino”; deu alguns passos, entrou no círculo menor e disse: “Se o seu reino, rei do tempo, não me cabe, morarei no meu reino”, e mal entrou no círculo menor desapareceu das vistas dos presentes”. 




A perda da visão poética 9

Existem livros que, apesar de todos os comentários feitos sobre eles, permanecem incompreendidos. São os chamados livros fechados.

As pessoas com sangue nos olhos e as pessoas invejosas (as com olho grande ou com olho gordo) não conseguem lê-los. Livros fechados são escritos em uma linguagem que é melhor lida quando conseguimos fechar nossos olhos animalescos. Quando lemos com olhos que não refletem imagens, mas com olhos que são a própria fonte de luz. Um livro fechado só se abre ao entendimento espiritual.

A perda da visão poética nos impede de entender a linguagem dos livros fechados.


Iniciação

Uma receita para presbiopsia:


Quem quer que sejas: deixa tua alcova,
da qual já sabes tudo que desejas;
teu lar na tarde, longe se renova,
quem quer que sejas.

Com teus olhos exaustos, que ainda a custo
entre os gastos umbrais logram passar,
ergues inteira a sombra dum arbusto
posto ante o céu – esguio, singular.

E tens já pronto o mundo: estranho assim
como palavra que amadurecesse
no silêncio, e que teu olhar esquece
quando lhe captas o sentido, enfim...


RilkePoemas e Cartas a um Jovem Poeta


Livro das Mil e Uma Noites – Volume II (ramo sírio, 2005)




Sahrazad contou histórias sobre a alegria de viver, os prazeres desfrutados em pencas ao lado de um riacho sob céus de murta, estrelas de narciso, sóis de rosa, relampos de vinho, nuvens de taça, trovões de incenso e brumas de arco-íris.

Falou de cidades agradáveis e seguras, que se ondulavam sob os pés do morador e se mexiam sob os pés do residente. Falou de comandantes que escreviam, que liam e que exorcizavam.

Narrou sobre as horas contadas dos amantes, os corações úmidos de saudade e de afeto e os olhos que procuram a cura na insônia. Narrou sobre pessoas livres que eram enganadas por belas palavras e sobre pessoas que agiam conforme a sua natureza. Narrou sobre o perdão e a absolvição.

Expôs o que sabia sobre o destruidor dos prazeres e separador dos grupos, louvando quem prepara o tempo, constrói os mundos e não se distrai de uma coisa por outra.

Dinarzad ouviu sobre a paciência. A paciência de que devemos nos armar na desgraça, a paciência alquebrada que luta com o sentimento desperdiçado, a paciência que é amarga, a paciência que deveria se espantar da própria paciência quando somos pacientes.

E ouviu também sobre o destino, cujas decisões ninguém pode evitar. O destino ingrato, que talvez afrouxe as rédeas e renove as esperanças.

Depois disso, que o rei deixasse que outras coisas ocorressem. 


“Ó rei do tempo, esse círculo maior é o seu reino, e o círculo menor é o meu reino”; deu alguns passos, entrou no círculo menor e disse: “Se o seu reino, rei do tempo, não me cabe, morarei no meu reino”, e mal entrou no círculo menor desapareceu das vistas dos presentes”.


Volume I        Volume III


A perda da visão poética 8

POETA VIDENTE; POETA VISIONÁRIO; POETA VOYEUR...
POETA VISUALIZADO... POETA OLHEIRO...


Versos de cansaço: o limite

O cansaço é uma sensação. É um sentimento. É um estado de consciência. Hoje.
Os versos de cansaço são linhas, reais ou imaginárias, de limite. Sejam sulcos, rastros, leitos, caminhos ou atalhos, demarcam as nossas divisas, as nossas fronteiras. Os versos de cansaço nos limitam com diferenças e extremos, com muralhas e distâncias. São as linhas do horizonte e da poesia a nos circunscrever.
O cansaço pode nos conduzir às nossas limitações.
O cansaço nos leva ao limite.


Livros inúteis

Recitamos um comentário de Jung sobre o Bardo Thödol, a Grande Doutrina da Libertação pela Audição e pela Visão no Plano do Pós-Morte, conhecido também como O livro tibetano dos mortos. O comentário encontra-se na obra organizada por W. Y. Evans-Wentz.

É bom que existam livros “inúteis” para todos os fins e propósitos. Eles são destinados a essa “gente rara” que não dá tanta importância aos hábitos, metas e significados da “civilização” atual.


Carl G. Jung


Livro das Mil e Uma Noites – Volume I (ramo sírio, 2005)




Tudo começou quando o rei Sahriyar descobriu que havia sido traído pela sua esposa com um escravo. A tomada de consciência da traição o conduziu a uma pergunta: alguém no mundo teria sofrido uma desgraça ainda pior do que a dele? Traído, com essa questão em mente e na companhia de seu irmão Sahzaman, Sahriyar decidiu abandonar seu reino e perambular. Se encontrasse alguém cuja desgraça fosse pior do que a dele, retornaria. Se não, continuaria a vagar pelo mundo. O rei e seu irmão saíram do palácio pela porta secreta e seguiram viagem até a orla do mar salgado.

Lá os dois encontraram uma bela jovem que vivia trancada em um baú de vidro no fundo do mar sob a vigilância de seu marido. Mesmo assim, a mulher o traía enquanto ele dormia: “quando a mulher deseja alguma coisa, ninguém pode impedi-la”. Esta bela mulher carregava consigo um saco contendo cem anéis: “todos os donos desses anéis me possuíram, e de cada um eu tomei o anel”.

Diante de tamanha desgraça, Sahriyar e Sahzaman voltaram para o reino.

O rei Sahryiar decidiu, então, se casar a cada noite com uma mulher diferente e matá-la antes do dia amanhecer. Um casamento que não duraria mais do que a noite de núpcias. O horror tomou conta das famílias e do reino.

Até que, em uma certa noite, que seria a primeira das mil que se seguiriam, Sahryiar se casou com Sahrazad. Ela tinha lido livros de compilações, de sabedoria e de medicina; decorado poesias e consultado as crônicas históricas; conhecia tanto os dizeres de toda gente como as palavras dos sábios e dos reis. Conhecedora das coisas, inteligente, sábia e cultivada, tinha lido e entendido.

Sahrazad pediu ao rei que chamasse sua irmã Dinarzad a fim de que elas pudessem se despedir. Quando a noite se fez mais espessa, no momento oportuno, Dinarzad disse: “Minha irmãzinha, se não estiver dormindo, conte-nos uma de suas belas historinhas, para que eu possa despedir-me de você antes do amanhecer, pois não sei o que vai lhe acontecer amanhã”.

A pedido da irmã e com a permissão do rei, Sahrazad disse contente: “ouça”


“Ó rei do tempo, esse círculo maior é o seu reino, e o círculo menor é o meu reino”; deu alguns passos, entrou no círculo menor e disse: “Se o seu reino, rei do tempo, não me cabe, morarei no meu reino”, e mal entrou no círculo menor desapareceu das vistas dos presentes”. 


Introdução        Volume II


Mangifera indica – 13/7



13/7    
            Talvez haja ainda mais flores do que há um ano e um dia.
  

13/6        13/7


Livro das Mil e Uma Noites – Introdução

As mil e uma noites não morreram... continuam crescendo, ou recriando-se. E o infinito tempo do livro continua o seu caminho.

Jorge Luis Borges

Mamede Mustafa Jarouche traduziu Kitáb alf layla wa layla, título original do Livro das Mil e Uma Noites, do árabe para o português. O tradutor verteu palavras e expressões de um idioma para o outro, captando ritmos, tons e melodias e acrescentando notas não apenas esclarecedoras para nosso entendimento, como também inspiradoras. À seguinte fala de uma personagem: Ó rei, não deixes que o amor ou o ódio pelo que quer que seja te adentre o coração, pois o coração possui uma especificidade inscrita em seu nome, não tendo sido chamado de coração senão por se revirar, ele acrescentou a nota: em árabe, a palavra taqallub, nome da ação do ‘ato de revirar-se’, é cognata de qalb, ‘coração’. Jarouche nos apresenta também o significado dos nomes das personagens. Ala’uddim, o da lâmpada mágica, quer dizer elevação da fé (ala – elevação  e addim – a fé).

Lemos em Nossos Estudos Poéticos o Livro das Mil e Uma Noites, unindo-nos àqueles que se perguntam como e por que essas histórias, das quais desconhecemos a autoria, foram criadas. E vamos tentar fazer parte de sua criação coletiva transformando-o em posts para continuar compondo nosso mosaico de textos. Serão 7 tesselas postadas, como se fossem os 7 véus a serem retirados:

1) Introdução
2) Volume 1
3) Volume 2
4) Volume 3
5) Na noite seguinte, que era a 666ª
6) As 1001 noites ou O livro do véu de Ísis
7) Volume 4

Esperamos que nossas tesselas se aproximem da beleza daqueles mosaicos do palácio de Aladim, construído com pedras de jade, mármore e pórfiro pelo escravo que saía da lâmpada quando ela era esfregada. E esperamos que elas possam revelar aos nossos corações novos entendimentos para a tradução de Mamede Mustafa Jarouche. 




Versos de cansaço: o corpo

O cansaço é a crítica possível ao corpo contraído


Versos de cansaço: a fartura e o enfarto

Estamos fartos e a Terra, desnutrida
Estamos anêmicos e a Terra, desanimada

Abrimos versos que mais parecem covas
e o sangue sobre a Terra derramado
não contém o dissabor de sequer uma lágrima

Estamos anêmicos e a Terra, desnutrida
Estamos fartos e a Terra, desanimada

Alimentos já tantas vezes congelados e descongelados
continentes já tantas vezes congelados e descongelados
cristais de vírus e de homens aguardam o Dia do Degelo

Avança o mar e avançam as pesquisas
enquanto a neuropsicologia segue habituando os bebês

Avança o mar e avançam as pesquisas
enquanto a humanidade segue atingindo uma idade avançada

Avança o mar e avançam as pesquisas
enquanto os corações enfartados, clinicamente mortos,
contêm ainda uma gota.


O cansaço e a moenda

Moídos, triturados todos os nossos corpos, todos os nossos corpos granulados reduzidos a pó. Vencidos pelo cansaço, desistimos.


O cansaço e o desgaste

Gastos, enfraquecidos, curtidos, diminuímos, humilhamo-nos, perdemo-nos com o atrito da vida e do tempo que só passam. Menores, diminutos, mínimos, micros.