A flor da superfície
A Casa da Flôr ainda guarda os pertences de Seu Gabriel – um livro,
uma bandeira do Brasil, fotos de família, a louça que aparece na foto. Vejam: há uma flor pintada sobre a superfície do bule. As flores existem no todo e nas partes. As flores existem profunda e superficialmente.
Terceiro turno – os personagens
A literatura eleitoral, ao apresentar a fala do personagem Candidato, apresenta também a fala do personagem Eleitor. É um monólogo no qual o Candidato fala o que o Eleitor quer ouvir – que se trata de um diálogo entre o Candidato e o Eleitor. Em seu discurso, o Candidato apresenta os valores, os critérios de avaliação, os medos, os desejos,
as fantasias e as carências do Eleitor: compromisso, competência, coragem,
honestidade, o bem comum, respeito à justiça social, à solidariedade humana e à
diversidade sexual, meritocracia, parceria, qualidade de vida, integração, sustentabilidade,
acessibilidade, mobilidade e fim da impunidade.
O Candidato quer esquecer o passado. O Eleitor tem medo do velho e deseja o que é novo, de preferência no plural. O Candidato mostra a necessidade da elaboração de novas leis e do investimento em novas tecnologias. A fim de que o
Brasil seja para sempre o País do Futuro, Candidato e Eleitor fantasiam viver na Terra do Nunca. Candidato e Eleitor formam uma téssera cuja senha é o
voto.
Versos de descanso: os deuses
Os deuses esquecidos nos números das horas, os deuses esquecidos nos
nomes dos dias da semana, e nos nomes dos meses, os deuses esquecidos nos nomes
dos reis e das eras e dos kalpas, os deuses esquecidos nos nomes, os deuses
esquecidos no tempo, os deuses esquecidos em nós – descansam?
Ron English – Do Estúdio para a Rua
O quadro é de Nossa Senhora. Os quadrinhos são da
Mulher Maravilha. A
obra é de Ron English.
Visitamos a exposição Do Estúdio
para a Rua na Caixa Cultural RJ em 1º de novembro. Descobrimos 110 obras do
padrinho da arte urbana, mais um elo da corrente formada por ... Picasso, Andy
Warhol, Banksy, Shepard Fairy ...
O processo criativo do artista pode ser visto no documentário POPaganda: The Art and Crimes of Ron English,
dirigido por Pedro Carvajal e exibido em uma das salas da mostra. Destacamos a metalinguística na apropriação de
outdoors para se
refletir sobre o consumo sem perder o humor típico da linguagem da publicidade.
De acordo com o curador Rafael Ferraz, Ron English reconfigura e
ressignifica a iconografia pop. De
acordo com o próprio Ron English, seu trabalho recontextualiza as imagens do
consumismo pop na sua
visão do que é a alma americana.
Mc Supersized, mascote da rede de phat food, reparte um hambúrguer na
Santa Ceia com 12 personagens de animação, Huck Boy está crescendo
assustadoramente, a chupeta tem uma bala de revólver, o cérebro é um útero, a
lâmpada elétrica contém o cogumelo da bomba atômica, Abraham Obama é presidente
dos EUA, o V de vitória é o V de violência no gesto de paz e amor formado por dois mísseis e o
Smile revela o maxilar de uma caveira.
Fonte da imagem: www.pinterest.com
Terceiro turno – a narrativa
As campanhas eleitorais nos proporcionam uma literatura típica – a da
propaganda política. Este gênero apresentou-se como um misto de biografia/ curriculum vitae, no qual os candidatos contavam as
suas narrativas. Começavam pelo começo: lugar e família de nascimento. Depois, passavam aos tópicos da vida profissional (formação, profissão e carreira). Muitos começaram a trabalhar com os
pais, dado que comprova o mito da hereditariedade no Brasil, onde se herdam
dons, talentos, cargos, capitanias. Está no sangue. Enfim, chega-se à vida política do candidato. O perfil é o do trabalhador ágil, dinâmico, apaixonado,
firme, empreendedor, eficiente, que faz o quê? A diferença.
Ele tem um desafio, ele tem uma missão, ele luta pela libertação das vítimas das modernas formas de
escravidão (as drogas e a exploração da prostituição), pela liberdade religiosa,
pela defesa da educação, da cultura, do patrimônio, do meio ambiente, pela valorização
da dança, do teatro, da música, das artes plásticas, do circo. Ele luta não em grandes combates, mas em grandes debates.
História de um cão
Aos professores que ensinam poesia aos alunos, aos pais que ensinam
poesia aos filhos e aos que seguem a Lei do Sacrifício:
História de um cão
Eu tive um cão. Chamava-se Veludo:
Magro, asqueroso, revoltante, imundo
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo
Recebi-o das mãos dum camarada,
Na hora da partida, o cão gemendo,
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim - mau grado seu - o vim trazendo.
Magro, asqueroso, revoltante, imundo
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo
Recebi-o das mãos dum camarada,
Na hora da partida, o cão gemendo,
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim - mau grado seu - o vim trazendo.
O meu amigo cabisbaixo, mudo,
Olhava-o... o sol nas ondas se abismava...
"Adeus" — me disse — e ao afagar Veludo,
Nos olhos seus o pranto borbulhava.
Olhava-o... o sol nas ondas se abismava...
"Adeus" — me disse — e ao afagar Veludo,
Nos olhos seus o pranto borbulhava.
"Trata-o bem. Verás como rafeiro
Te indicará os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos."
Te indicará os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos."
Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.
Nas longas noites de luar brilhante
Febril, convulso, trêmulo, agitado
A sua cauda — caminhava errante
À luz da lua — tristemente uivando.
Febril, convulso, trêmulo, agitado
A sua cauda — caminhava errante
À luz da lua — tristemente uivando.
Toussenel: Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.
Lembro-me ainda. Trouxe o correio
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! era um artigo
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! era um artigo
Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Prata.
Falava em rios, árvores gigantes:
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Prata.
Falava em rios, árvores gigantes:
Gabava o steamer que o levou; dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais - todas francesas.
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais - todas francesas.
Assombrava-me muito da ligeira
Moralidade que encontrou a bordo:
Citava o caso d’uma passageira...
Mil coisas mais de que me não recordo.
Finalmente, por baixo disso tudo
Em nota bem do melhor cursivo
Recomendava o pobre cão Veludo
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.
Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento
Me contemplou, e — creia que é verdade,
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.
Me contemplou, e — creia que é verdade,
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.
Depois lambeu-me as mãos humildemente
Estendeu-se aos meus pés atencioso
Movendo a cauda e, — adormeceu contente
Farto d'um puro e satisfeito gozo.
Estendeu-se aos meus pés atencioso
Movendo a cauda e, — adormeceu contente
Farto d'um puro e satisfeito gozo.
Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro;
Para nada Veludo me servia
Dei-o à mulher d'um velho carvoeiro.
Vi-me livre daquele companheiro;
Para nada Veludo me servia
Dei-o à mulher d'um velho carvoeiro.
E respirei! "Graças a Deus! Já posso"
Dizia eu "viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo."
Dizia eu "viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo."
Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglês, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca cismadora.
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglês, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca cismadora.
Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver quem era. Abri. Era Veludo.
E a negra noite amortalhava tudo
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver quem era. Abri. Era Veludo.
Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito;
E — de cansado — foi rolar dormindo,
Como uma pedra, junto do meu leito.
Farejou toda a casa satisfeito;
E — de cansado — foi rolar dormindo,
Como uma pedra, junto do meu leito.
Praguejei furioso. Era execrável
Suportar esse hóspede importuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.
Suportar esse hóspede importuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.
E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um só meio: era matá-lo.
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um só meio: era matá-lo.
Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo,
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante em instante ia o tufão crescendo.
Ao longe o mar na solidão gemendo,
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante em instante ia o tufão crescendo.
Chamei Veludo: ele seguia-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.
Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei um remo — e com furor remamos.
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei um remo — e com furor remamos.
Veludo à proa olhava-me choroso,
Como o cordeiro no final momento.
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.
Como o cordeiro no final momento.
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.
No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente!
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente!
Voltei à terra — entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.
Mas, ao despir dos ombros meus o manto
Notei — oh grande dor! haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: eu tinha-o unido.
Notei — oh grande dor! haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: eu tinha-o unido.
Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.
Certo caíra além no mar profundo
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah, se Veludo
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah, se Veludo
Duas vidas tivera — duas vidas
Eu arrancara aquela besta morta
E aquelas vis entranhas corrompidas!
Nisto senti uivar à minha porta.
Eu arrancara aquela besta morta
E aquelas vis entranhas corrompidas!
Nisto senti uivar à minha porta.
Corri, - abri... Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se a meus pés — e docemente
Deixou cair da boca que espumava,
A medalha suspensa da corrente.
Estendeu-se a meus pés — e docemente
Deixou cair da boca que espumava,
A medalha suspensa da corrente.
Fora crível, oh Deus? — Ajoelhado
Junto do cão — estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.
Junto do cão — estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.
Luis Guimarães (Filho)
Cachorro no quintal
Durante a visita à Casa da Flôr, fomos acompanhados pelo sobrinho-neto
de Seu Gabriel. Ele nos disse que, às vezes, alguns estudantes fazem piquenique
no quintal da casa. Contou também que Seu Gabriel gostava muito de cachorro, e
mostrou o lugar onde havia sido enterrado seu bichinho de estimação – um túmulo cheio de pequenas pedras.
Matéria, arte, vida
Nossa afinidade com o pensamento do autor destas palavras recitadas se reflete nos links:
Os artistas lidam com
matéria inerte. O homem que está esculpindo a imagem do seu Eu verdadeiro para
emergir de sua natureza inferior está trabalhando com alguma coisa viva, real.
Um problema da vida está sendo resolvido. Um quadro vivo do que deveremos ser
no futuro está sendo pintado. Uma nova estátua corporificando nossa futura
perfeição está sendo esculpida no mármore bruto de nossa natureza inferior. É a
criatividade divina neste trabalho que transforma nossa vida numa canção,
apesar de todas as perturbações e tribulações que passamos na periferia de
nossa consciência no mundo externo. É semelhante ao processo de um botão tentando abrir-se em flor com toda a alegria natural sempre presente em tal
processo de desenvolvimento na natureza. Estamos tentando trazer o futuro para o presente. Estamos nos tornando aquilo que somos. Não sabemos como a estátua será, mas Aquele que é o Eu interior sabe e sentimos sua mão guiando-nos ao
tomarmos o buril e começarmos a modelar o bloco de mármore de nossa natureza
bruta. Os que são artistas e conhecem a alegria de pintar um quadro ou escrever um poema podem avaliar o que seria a felicidade de produzir uma imagem divina viva, que potencialmente está oculta em nosso interior. Um quadro é coisa
morta, uma estátua é coisa morta, mas aquilo que tem vida, que aos poucos vai
surgindo de nosso interior, é um Ser Divino de infinito potencial, que se torna
cada vez mais um veículo do amor, da sabedoria e do poder divinos.
I. K. Taimni, em Autocultura à
Luz do Ocultismo
Terceiro turno – o pronome indefinido
O tempo futuro parece encontrar no Brasil a sua correspondência no
espaço. Afinal, somos O País do Futuro.
O espaço tão bem descrito na Canção do
Exílio de Gonçalves Dias: “Nosso céu tem mais
estrelas,/ Nossas várzeas têm mais flores,/ Nossos bosques têm mais vida,/ Nossa vida mais amores”. No país gigante, uma palavra
muito empregada pelos políticos é a palavra mais
– mais vagas, mais
ciclovias, mais
participação dos cidadãos nas decisões políticas, mais
habitação social, mais planejamento metropolitano, mais esporte, mais fiscalização, mais prioridade, mais foco, mais
investimento, mais aumento, mais
ampliação, mais expansão, mais
otimização... mais mais.
Versos d’água: a enchente
Deslizam raízes como fraturas expostas, como cobras empalhadas,
cicatrizes da tempestade, impressão dos raios, boiando na terra encharcada,
supersaturada de água.
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