Na noite seguinte, que era a 666ª


Quando pedimos para que alguém nos conte uma história, entregamos nossa audição, nossa visão e nosso coração. As histórias espantosas, cujos assuntos são extasiantes, maravilhosos e insólitos, precisam ser contadas a fim de que elas mesmas se encaminhem até a adequada complementação dos seus sentidos e dos seus suaves vocábulos. E com elas avançamos sem saber sobre o que o oculto nos reserva.

Conta-se, mas Deus sabe mais sobre o que já é ausência, que nós postamos que Sahrazad disse que um certo rei disse que, sem lhe ver a imagem, ouviu a voz de alguém dizer em versos o nascimento de sua filha Hayfa.

Hayfa cresceu em um palácio em forma de cubo no centro de um círculo de água. O rio em torno do palácio parecendo um anel em torno do dedo. Os construtores escreveram poesias nas correntes dos lampiões de cristal pendurados no salão e também nos lampiões. Na porta, escreveram: “Este palácio já aparece como alegria para quem o vê; o bom augúrio escreveu às suas portas: entrem em paz e segurança.

Aos 4 anos, Hayfa decorou o alfabeto e adquiriu um discurso agradável. Aos 10 anos, decorou metros da poesia e seu discurso ficou ainda mais belo. Aos 14, ensinou as criadas a fazer poesia. Hayfa escreveu na porta do palácio: “Ó leitor destas linhas, vê se entende e pensa, eu te peço por Deus poderoso”.

Um dia, um príncipe chamado Yusuf, fugindo da casa de seu pai, chegou às margens do rio que contornava o palácio de Hayfa. Yusuf mergulhou no rio, atravessou o curso d’água, chegou à outra margem, leu os versos na porta do palácio e escreveu outros: “À  sua porta, fonte de generosidade, chegou um forasteiro desterrado que se tornou errante; talvez sua generosidade o salve da errância, e o proteja da injustiça do inimigo contumaz. Não tenho refúgio senão a sua porta, a qual contém sentidos de versos como se fossem colares, que o filho de Sahl leu, e recorreu a vocês. Socorram o estranho que lhes chega sozinho”.

Encontrando-se, Hayfa e Yusuf se indagaram a si mesmos, ambos ignorando o que lhes destinara aquele que quando diz para algo “seja”, é. Ela disse para que ele deixasse por conta dela a boa resposta, a sutileza da palavra e a essência da poesia. Ambos se extasiaram profundamente com a poesia, arrancaram as roupas, gritaram e ficaram desacordados quando a poesia foi concluída com os sentidos ocultos nela inovados.

Mas, no momento do ciúme e da separação, Yusuf se tornou aquele cujo coração já não mais permitia poesias. E, então, o coração e o sopro vital de Yusuf ficaram com Hayfa, enquanto seu coração e sua mente estavam em luta. A mente e o juízo de Yusuf desejavam a secura. O coração e o sopro vital, a relação.

Como o destino irremediável dos corações é se reunirem uns aos outros, venceu a relação.

Quando entregamos nossa audição, nossa visão e nosso coração, recebemos o entendimento. O que é o entendimento? É a reflexão e a compreensão das coisas em sua verdade. Sahrazad havia lido e entendido, por isso podia narrar.


“Ó rei do tempo, esse círculo maior é o seu reino, e o círculo menor é o meu reino”; deu alguns passos, entrou no círculo menor e disse: “Se o seu reino, rei do tempo, não me cabe, morarei no meu reino”, e mal entrou no círculo menor desapareceu das vistas dos presentes”




Versos de descanso: estrangeira

Descansa, 
a poesia vem sempre em língua estrangeira


O caminho da tradução

O verbo traduzir chegou até nós vindo do latim com o sentido de conduzir além, transferir.

Um conhecimento da língua ou da cultura em que determinado idioma está inserido é o bastante para fazer de uma pessoa um tradutor? O erudito que não acredita no conteúdo dos textos que traduz seria um bom tradutor das obras que traduz?

A resposta é negativa para o Lama Anagarika Govinda. Ele aponta o método empregado pelos Lotsavas, os tradutores de textos sagrados do Tibete. Talvez possa ser útil para nossa leitura de textos poéticos, já que estes trazem algo de sagrado em suas linhas e cada leitura é uma tradução.

Como ponto de partida, é preciso chegar à obra com um espírito de verdadeira devoção e humildade. A tradução é uma responsabilidade sagrada. Há casos em que traduções feitas por eruditos que se restringem ao conhecimento da língua mais limitam do que ampliam nossos caminhos, e acabam por nos conduzir aquém do entendimento dos livros. 

Como ponto de chegada, não se deve considerar a sua versão como final ou infalível. Ela é, na verdade, um ponto de partida para futuras versões. Isso porque, à medida que o nosso próprio conhecimento aumenta, mais profundas e perfeitas podem ser as traduções; e mais próximas dos significados internos dos textos.


Versos de descanso: início

Tudo aquilo que o Descanso inicia