Lucidez

Seguem três lúcidas recitações sobre a diferença, o cansaço e o absurdo:

A mais segura diferença que poderíamos estabelecer entre as pessoas não seria dividi-las em espertas e estúpidas, mas em espertas e demasiado espertas, com as estúpidas fazemos o que quisermos, com as espertas a solução é pô-las ao nosso serviço, ao passo que as demasiado espertas, mesmo quando estão do nosso lado, são intrinsecamente perigosas, não o conseguem evitar, o mais curioso é que com os seus actos estão constantemente a dizer-nos que tenhamos cuidado com elas, em geral não damos atenção aos avisos e depois aguentamos as consequências.

¿!

Não se cansem a discutir, a melhor atitude ainda será a de não pedir explicações e logo duvidar delas no improvável caso de que as tenham dado, quase sempre são mentirosas.

¿!

Os que mandam não só não se detêm diante do que nós chamamos absurdos, como se servem deles para entorpecer as consciências e aniquilar a razão.


José Saramago – Ensaio sobre a lucidez


7) O Mahabharata – no fim


No princípio não há nada.
Nós existimos no entremeio.
Depois, nada há novamente.


No fim, enquanto o filho de Drona recitava um mantra para a destruição dos Pandavas e de Krishna, Arjuna recitava o mesmo mantra para haver paz no mundo inteiro e nele mesmo. Vyasa deteve o mantra do filho de Drona. E Krishna deteve o de Arjuna.

No fim Arjuna retirou as cordas do arco Gandiva. Draupadi chorou a morte de seu irmão. “Tanta coisa aconteceu”, ela lastimou.

No fim Krishna sentou-se ao lado de Sanjaya e do rei cego e, com palavras que fluíam docemente, começou a contar-lhes: um bilhão e seiscentos e sessenta milhões e vinte mil homens caíram nesta batalha. E pôs-se a recitar-lhes os nomes.

No fim, em Kurukshetra, todos os sinais de batalha sumiram. Kama entoou um cântico: “Para longe as preocupações do mundo!”.

No fim só há um inimigo – a ignorância.

No fim Yudhishthira foi consagrado rei. Recitou silenciosamente seu mantra secreto, que nunca será escrito e nunca será dito para ser ouvido.

No fim músicos bharatas tocaram a canção de que ninguém mais se recorda. Foi no nascimento do filho de Arjuna, o nascimento do neto de Indra. Só o rei Gandharva e outros reis parecem ouvi-la.

No fim o rei cego morreu na floresta.

No fim Sanjaya partiu para os Himalaias e ele pensou: “Terra, minha mãe, quanta ingratidão naqueles que rejeitaram sua fartura e preferiram entregar-se a Yama. Como é possível que eles a vissem qual mansão de dor e tristeza, onde ninguém pode permanecer?”.

No fim Krishna voltou para sua cidade. No caminho, um brâmane comentou sobre a guerra que o Senhor havia conseguido impedir. E quando Krishna finalmente chegou em seu lar, ninguém quis ouvir o que ele tinha a dizer sobre a guerra. Arjuna, seus irmãos e Draupadi, vestidos de preto, caminharam para o norte. A cidade de Krishna, próxima ao mar, foi coberta pelas águas. Krishna vagava por uma floresta. Deitou-se na grama e pensou: “Arjuna, onde você está? Amanhã destruirei o mundo por causa de sua maldade”. Nesse instante um caçador confundiu o pé de Krishna com um bicho da floresta e lançou-lhe uma flecha. Krishna morreu, com sua túnica amarela e seus quatro braços.

Vaisampayana disse: “Curvo-me perante Deus, que habita este mundo dentro de nós. A quem o chamar, por qualquer nome, por esse nome Ele virá. Portanto, cautela e reverência com os nomes de Deus. E assim encerro minha história”.

Saunaka disse: “Junto à árvore de Narayana, cujas folhas são canções, no seio da montanha, os atores se reuniram e se perguntaram: ‘O que faremos a seguir?’”.

NEP dizem mais uma vez: “O que não está no Mahabharata não está em nenhum outro lugar”. 




A palavra de Patañjali

Palavra é aquilo que, quando pronunciado, traz a compreensão do significado. Para os gramáticos, a palavra real, verdadeira é sphota – aquilo por meio do qual se manifesta o significado. A palavra é recebida pelos ouvidos, percebida por buddhi e refletida no som. Essa reflexão no som não é a reflexão do significado. É a reflexão da palavra. O significado não abandona a palavra. O significado é compreendido pela própria palavra. A palavra é eterna e reside dentro de nós.

Buddhi é nossa alma espiritual, nosso ser psíquico. Seu desenvolvimento marca o começo da espiritualidade. Multifuncional, engloba a compreensão, a inteligência, o discernimento e a intuição. Buddhi não incorpora o raciocínio, que é uma função da mente.
  

anterior        próximo


6) O Mahabharata – No entremeio, a guerra




A Terra... Assemelha-se a
uma negra dançarina vestida de carmim...
Quem morreu aqui?
Quem cometeu assassinato?


Na véspera

Vyasa descreveu a planície dos Kurus para o rei cego que estava junto com Sanjaya: “Duas grandes cidades feitas de tendas de seda, uma diante da outra, no grande campo vazio. Corvos negros grasnam ‘Vá!’. Um círculo negro rodeia o sol. À noite, todas as estrelas são hostis. Os rios invertem seus cursos. As vacas ordenhadas só dão sangue. As estátuas dos deuses gargalham e estremecem. Crianças lutam com clavas de madeira. Os canalhas e assassinos cantam e dançam. Isso é medo e o mal sobrepondo-se ao mal”.

Depois Vyasa concedeu visão celestial a Sanjaya.

Sanjaya ficou cinco dias e cinco noites em Kurukshetra. Retornou após a aurora do 6º dia, dizendo: “Está tudo acabado. Não há como contar tudo. Minhas palavras soam estranhas e muito, muito distantes”.


No 1º dia

Krishna entoou um cântico para seu amigo Arjuna – o Cântico do Senhor. Os bardos e menestréis, sentados ao longo do Kurukshetra, compunham versos e canções da grande guerra dos Bharatas. Guerreiros bradavam, anunciando seus nomes. Vestiam uniformes, portavam estandartes, orientavam-se por senhas e sinais. As setas eram atraídas por seus alvos. Krishna gritou para Arjuna: “Não tema! Atire nele!”.


No 2º dia

Duryodhana viu que as obras de Arjuna estavam além do que se podia conhecer. O grande guerreiro kuru Bhishma tombou de sua carruagem. Seu corpo não tocou a Terra porque estava cheio de setas. A lua concedeu aos mortos seus corpos celestiais.


No 3º dia

O guerreiro Susarman, que lutava pelos kurus, ao ver ser tolice combater Arjuna pela ilusão, caiu aos pés de Krishna e perguntou: “Senhor, o que é esta guerra?”.

Krishna disse a Arjuna: “Não chore, pois as lágrimas queimam os mortos com seu fogo líquido”.

O guerreiro kuru Drona foi atingido mortalmente por uma mentira quando estava desarmado. “Vergonha para os que desconhecem o que é ser guerreiro”, pensou Arjuna. Quis o filho de Drona se vingar usando a arma de Narayana: dez mil flechas e dez mil dardos em chama, cem mil espadas, clavas e machados, um milhão de rodas afiadas e pesadas bolas de ferro caíram sobre as tropas dos pandavas. Krishna e Arjuna desarmaram seu próprio exército, dizendo para que niguém pensasse em guerra. Todos deitaram-se no chão com o coração em paz. Com isso, a arma de Narayana fracassou e o filho de Drona se perguntou na noite: “Ah, será tudo mentira?”.

No campo de batalha, cadáveres decapitados tateavam em busca dos assassinos. Os guerreiros kurus já não viam mais sua juventude, nem mesmo a primavera daquele ano. mas Duryodhana ainda acreditava que o destino podia mudar a qualquer momento e se perguntava: “Por que deve haver restrições sobre quem quer que seja? Por que não se há de ser livre para fazer o que se quer?”.


No 4º dia

Os deuses chegaram para observar a batalha.

O guerreiro Karna, que lutava pelos kurus, cortou a corda do arco de Arjuna e lançou o dardo de Indra contra a cabeça dele. Krishna fincou o pé no chão. A quadriga de Arjuna afundou na Terra. O dardo atingiu a coroa de Arjuna, partindo-a. Arjuna lançou uma flecha contra Karna, que caiu com a cabeça decepada. Jamais considerou que a arma de Indra pudesse falhar. Por isso, não se protegeu.

Duryodhana chorou a perda do amigo e se lembrou do jogo de dados e de Draupadi. “Ela jamais me perdoará”, pensou. Yudhishthira se perguntou olhando para Karna: “Quem era ele?”.

Os deuses se foram. A vitória deixou os kurus para sempre.


No 5º dia

Quando o sangue selou o pó da Terra, as mulheres se tornaram viúvas. Sanjaya sentiu o perfume das Apsaras e lamentou não haver ninguém para matar em oferecimento a elas. O fascínio da guerra fez com que ele entrasse em transe. Todas as leis da guerra foram quebradas. Aurigas e animais eram mortos, guerreiros não mais anunciavam seus nomes, já nem mais sabiam se suas vítimas eram amigos ou inimigos. E essas eram questões muito ínfimas, para as quais não havia tempo. Sanjaya estava prestes a ser morto, mas Krishna libertou-o.

Duryodhana desapareceu na floresta. Ele é a alma da ilusão. Diz que os livros em tudo divergem, que os homens discutem e a nada chegam e que a verdade está oculta em cavernas. Krishna já não queria mais ver a vida sendo derramada. Duryodhana sofreu um golpe baixo de Bhima. Como um homem combateria seus cinco sentidos, Duryodhana combateu os pandavas. E por isso perdeu.


Na aurora do 6º dia

Enquanto os guerreiros dos exércitos dos pandavas dormiam, o filho de Drona entrou nas tendas, esganando e estrangulando os inimigos com as próprias mãos, e depois com a espada. “Quem vive ainda?”. Houve silêncio antes e depois do filho de Drona fazer a sua pergunta.

As últimas palavras de Duryodhana foram para o filho de Drona: “Assassinou inocentes e deixou meus inimigos vivos. Basta. Eu quase venci”. Duryodhana morreu ao amanhecer. E Sanjaya perdeu sua visão celestial.