Sutra: as palavras

As palavras que compõem um sutra exprimem conceitos filosóficos definidos. Sem um conhecimento do que nelas se encontra implícito, não é possível apreciar o significado de um sutra. Somente com a ajuda de tais palavras, que expressam todo um conjunto de ideias, plenas de profundos significados, é que um sutra pode ser elaborado.
  

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2) Prefácios e introdução ao Mahabharata

Uma qualidade é uma abstração, um silêncio. Em uma história, a qualidade pode ganhar a forma de uma personagem. Em uma personagem, ela pode ganhar nomes e epítetos. Se a história ganhar a forma de um texto, essa qualidade pode ganhar a forma de uma descrição. Em uma descrição, ela pode ganhar a forma de uma palavra. Pode ser um substantivo abstrato, um adjetivo ou até mesmo um verbo se a qualidade atingir seu objetivo – existir através da ação da história. É a linguagem em sua função de colaborar para o desenvolvimento das qualidades. Talvez seja esse o momento em que se realiza a metáfora citada por J. C. Ismael em seu prefácio: as palavras se transformam nos veículos para alcançarmos o reino mágico do silêncio e do indescritível em nosso dia a dia.

Que qualidades podemos encontrar na grande história dos Bharatas?

B. A. Van Nooten introduz o livro dizendo que santi é o principal sentimento da narrativa. Ele traduz a palavra sânscrita como serenidade. Nós podemos traduzi-la como paz. Sim: um livro sobre guerra contém a luta e a paz a fim de que a téssera esteja completa. Porque não se trata de uma guerra qualquer. Como diz Ismael, trata-se de uma guerra na qual os guerreiros são deificados, de uma guerra que é uma vida iniciática. Em nosso Mahabharata essa iniciação é marcada pelas questões que os próprios guerreiros fazem no campo de batalha. E onde mais poderiam tais questões aparecer?

Encontramos uma outra qualidade, esta citada pelo próprio William Buck em seu prefácio – a verdade. O autor reconhece que fez várias mudanças no seu Mahabharata. Ele inclusive diz ter alterado as características das personagens como recurso para atualizar a história. Mas, como a verdade, por ser uma qualidade, está para além do plano dos fatos, ele diz que suas alterações não interferem na verdade da história. A narrativa transmite ainda o espírito do épico. E o que é o espírito do épico senão a sua própria verdade?

Um livro de guerra é ainda muito útil para nos falar da amizade. Quem são nossos amigos, quem são nossos inimigos? Com quem lutamos e contra quem? A grande inspiração de Buck para realizar a sua obra foi a amizade entre Krishna e Arjuna. O autor encantou-se com os laços que unem as duas personagens através das voltas do tempo cíclico. Uma amizade que é visível a uma das personagens e oculta à outra.

Lendo o livro podemos ainda encontrar o amor que nós mesmos podemos sentir pelas personagens. É quando as qualidades já não mais precisam de metáforas, palavras, descrições, nomes, epítetos, textos, pois nós já as encontramos. Buck nos lembra de que até mesmo o difícil Duryodhana merece o nosso respeito, caso queiramos compreender o significado da história da vida.

O nosso Mahabharata, assim como o de Buck, assim como tantos outros, esperam pelas leituras. Não no sentido do desejo, mas no sentido da espera mesmo. Livros esperam. Blogues esperam. Enquanto as qualidades vão sendo desenvolvidas. 




Fonemas d’água: vr

Vr é a raiz de Varuna, o senhor das águas. A raiz significa cobrir. Remete ao que está oculto, aos invólucros e envoltórios. O que está escondido também está protegido, guardado. A palavra cobrir cobre a palavra pario. As camadas são cobrir > cooperire > co + operire > operire = ob + pario. Pario significa parir, dar à luz, pôr, gerar.

Os versos de Varuna são as cordas que ele traz na mão. Elas simbolizam o seu poder de ligar e desligar, prender e libertar. Nos manuscritos maias, a chuva é simbolizada por cordas. Il tombe des cordes (caem cordas) é uma expressão francesa para indicar que chove muito.

Os versos do senhor das águas Faro são colares. Com o colar de ouro, ele ouve as palavras secretas e poderosas dos homens. Com o colar de cobre, ele ouve as de uso corrente.

Os colares de Faro e as cordas de Varuna são os nossos versos d’água.


O tremor

Quando a Terra volta a escrever seus profundos versos, um vento que não sopra derruba asas de pedra no chão. Quando a Terra abre seus profundos versos, ela nos une ainda mais. Os versos da Terra só destrõem, só engolem o que já é dela mesma.

Recitamos um trecho do Ramayana, ilustrando-o com uma imagem da ave Garuda antes do terremoto deste nosso outono:


Indra esteve escondido perto da Terra. Atirou um raio e atingiu o peito de Garuda. Com esse golpe, todo o conhecimento veio a Garuda. Ele ficou sabendo tudo o que já existira, tudo o que existia e tudo o que viria a existir; conheceu-o num instante.





Ora, em sinal de respeito pelos dias passados, quando aquele raio insuportável o atingiu, Garuda deixou cair uma pena. A pena de ouro revoluteou no ar, do tamanho de um escudo de guerra.


O Ramayana – William Buck