Jogos Vorazes – O tordo e a distopia



Foi no ano passado, na semana do Natal. Era noite de segunda-feira. O shopping estava cheio, havia fila na porta de uma loja de chinelos, as pessoas carregavam sacolas e bolsas esbarrando umas nas outras. Uma das consumidoras reclamava de ter sido roubada, de ter ficado sem dinheiro, cartão, documento, chave... O cinema estava mais vazio que de costume. Foi quando assistimos à primeira parte de Jogos Vorazes – A Esperança, adaptação para o cinema do livro de Suzanne Collins.


Quem nos apresentou ao livro foi a mesma menina que nos mostrou Lições de Cousas. Na época, achamos interessante o fato de a ideia da autora ter surgido enquanto ela zapeava canais de tevê. O reality show em uma emissora e as cenas da Guerra do Iraque em outra formaram a téssera que deu origem à trilogia Jogos Vorazes, Em Chamas e A Esperança. O link foi o mito de Teseu. Anos depois, uma amiga da tal menina sugeriu que fôssemos ver os filmes.


Vimos que os Jogos Vorazes (Hunger Games), realizados pela Capital de Panem, são um reality show no qual jovens tributos lutam até que somente um sobreviva em uma alegórica arena. Cada distrito de Panem é representado por um casal de tributos. A maioria dos participantes é escolhida por sorteio em um evento chamado Colheita. Nossas tésseras aparecem no livro para nomear o pequeno suprimento anual de grãos e óleo fornecido para uma pessoa em troca de que seu nome seja novamente colocado na Colheita. A fim de poupar a irmã sorteada, uma jovem apresenta-se como voluntária – a primeira voluntária do distrito 12. Trata-se de Katniss, a personagem principal. Sempre supreendendo os idealizadores, os patrocinadores e a audiência dos jogos, ela é a vencedora, juntamente com seu par. Quebrando as regras, a arqueira vai se transformando em símbolo. No início, da própria Capital. Mas, ao longo da trama, Katniss acaba se revelando o símbolo de uma guerra de resistência ao poder da Capital.


Em entrevista, Suzanne Collins diz que 1984 e Admirável Mundo Novo estão entre as influências diretas da trilogia por causa dos aspectos distópicos. Em discurso no parlamento britânico, John Stuart Mill foi o primeiro a fazer um uso conhecido do termo distopia: "É, provavelmente, demasiado elogioso chamá-los utópicos; deveriam em vez disso ser chamados dis-tópicos. O que é comumente chamado utopia é demasiado bom para ser praticável; mas o que eles parecem defender é demasiado mau para ser praticável". Considerando a formação da palavra, utopia significa lugar nenhum e distopia, lugar ruim. As ficções distópicas estão intimamente linkadas com as sociedades em que elas são criadas. Vemos em Jogos Vorazes não só fome, mas medo, crueldade e tirania de governo, espetacularização e glamorização da violência, propaganda de guerra, juventude competitiva e uso de tecnologia a serviço de tudo isso. Seguem alguns exemplos de distopia na literatura e no cinema:

¿!  Totalitarista: 1984 (1949), V de Vingança (2005)
¿!  Corporativista: Robocop (1987), Clube da Luta (1999), Rollerball (1975)
¿!  Tecnológica: Blade Runner (1982), Divergente (trilogia), Admirável Mundo Novo
¿!  Ambiental: Nausicaä do Vale do Vento (1984)
¿!  Generalizada: La Belle Verte (1994)
¿!  Cybernética: Minority Report (2002), Matrix (1999)
¿!  Cyberpunk: Aachi & Ssipak, Akira (1988), Avalon, Blade Runner, eXistenZ, Ghost In The Shell (1994), Johnny Mnemonic, Looper, Metropolis, Natural City, Nirvana, Pandorum, Renaissance, Repo Men, RoboCop, Sleep Dealer, O Exterminador do Futuro, Videodrome, Matrix, Surrogates, WALL-E
¿!  Consumista: Clube da Luta
¿!  Pandêmica: 12 Macacos (1995), Filhos da Esperança (2006), Ensaio sobre acegueira (2008)
¿!  Moral: Beleza Americana (1999), Cisne Negro (2010)
¿!  Religiosa: O livro de Eli (2010)
¿!  Privacidade: Tokyo! (2008)
¿!  Misógena: A Decadência de uma Espécie (1990)
¿!  Militar: Equilibrium
¿!  Criminosa: A Laranja Mecânica (1971), Fuga de Nova York
¿!  Superpopulação: Battle Royale
¿!  Pós-apocalíptica: Mad Max (1979), O Planeta dos Macacos (1968), A Estrada
¿!  Conspiração: Divergente (trilogia)
¿!  Financeira: O Preço do Amanhã
¿!  Alienígena: Guerra dos Mundos (1953)
¿!  Cômica: Brazil (1985), Idiocracy (2006)


O que nos interessou realmente no eufemístico Jogos Vorazes – A Esperança (título traduzido para o Brasil) ou no denotativo Jogos da Fome – A Revolta (título do filme em Portugal) foi o Mockingjay. Jabberjays são pássaros criados artificialmente pela Capital para memorizar e repetir conversas humanas. A Capital os abandonou na natureza quando os rebeldes descobriram a estratégia. Mockingbird é o verdadeiro tordo, pássaro típico dos EUA cujo canto é a combinação do canto de outras aves. Mockingjay (também traduzido como Tordo, daí a confusão) é o pássaro originário do cruzamento dos machos Jabberjays com as fêmeas Mockingbirds. Os Mockingjays são capazes de reproduzir as melodias humanas. No início, o pássaro é apenas um broche. Depois, um amuleto. Transforma-se numa roupa, num gesto, numa canção, numa armadura, num símbolo. Consciente e espontaneamente construído ao mesmo tempo, corporifica-se na personagem Katniss, enquanto se enriquece de significados. Inspira e encoraja os personagens da ficção para a revolução; dá liberdade de criação à autora; reforça o marketing do filme. Teria o tordo a função de identificar a localização simbólica da distópica Panem?



Fonte das imagens: Sobresaga