Campus Martius - fragmentos

III

quem nasce de guerra, de guerra falece
escudos, lanças, pistolas, fuzis

morrer, viver, lutar

urge a vida aos 20 urge a vida aos 30 urge a vida
e a vida vos espera;

a vida espera
a vida espera
a vida espera

surgir em ti.

IV

março é um ritual
um rito de purificar e elevar a carne
aqui, neste vasto campo, que é de Marte ― que é Rio de Janeiro

em março ― a decrepitude vence o verão que vence a nascitura
a nascitura vence o inverno que vence a decrepitude de então

e março mantém o ritmo das lutas diárias
ritmo das chuvas torrenciais de chumbo
(ritmos de plantar e aos poucos colher)

e quem luta, luta com o tempo
tempo esquivo que faz e depois desfaz
e deixa seus mortos, seus filhos, seus frutos.

VI

o que tiver de ser, já terá sido
põe em dúvida esta palavra?
publicidade oracular:

recordar é viver
viva o futuro
a vida é agora

onde está a forma, então?
então, onde ela está?
em que tempo?
                                                           em que hora? Agora?
é onde se forma a vida
não em rostos publicitários
mas naquilo que germina
aqui, há luta e muita luta
o tempo é parte da sangria

o que tiver de ser!
canta o soldado raso
canta o timoneiro inerte, canta
quem pouco viveu, canta o adolescente
o que tiver de ser, canta o futuro
descontente, o futuro expatriado, canta
o exilado de guerra, canta a guerra
que não conheceu

o que tiver de ser!
é a forma futura, que talvez
dê em nada
que talvez seja tudo o que há
é projeto, estratégia, é a mão
forte, calejada, rija
como as idéias
a espera de um sopro final

o que tiver de ser!
faz mais alto o incauto
e baixo, baixíssimo, diz
o destino, a lei, o indizível
― já terá sido!

assim lampeja teu rosto, lampeja
alvorada! alvorada!
saraivada de alvoradas!
é a luta, só a luta
que torna a tua face afiada e pontiaguda.

[...]


A alma imoral

Compreendo a relação corpo-alma de outra maneira. Também compreendo de outra maneira as ideias de tradição e traição. Mas mesmo discordando da argumentação principal da peça A alma imoral, gostei muito do que vi. E gostei principalmente do fato de poder apreciar a beleza de algo apesar de minha discordância.

Fui assistir à peça a princípio com a intenção de estudar a transformação de um texto não dramático em dramático. A transformação se dá através da relação pergunta-resposta. Clarice reconhece na resposta a uma pergunta dada uma ação dramática. Ela fala inclusive da ação interna que ocorre quando buscamos uma resposta para uma pergunta.

E como essa ação dramática de perguntar e de responder está muitas vezes distante de nosso cotidiano! Ou não perguntamos ou damos às nossas perguntas sentenças que não são respostas.

Toda a peça é uma resposta a uma pergunta feita por outra pessoa. Não precisaríamos uns dos outros para estabelecer essa relação harmônica de questionadores e responsáveis? Se perguntássemos mais aos outros em vez de afirmarmos ou negarmos imperativos, se respondêssemos mais em vez de silenciar ou fingir surdez, como seríamos?

O mundo está o tempo todo a nos perguntar sobre quem somos nós, o que somos. Diz-se na peça que quanto mais intensa é a pergunta, mais se deve procurá-la, não importa onde ela esteja.

Quanto ao meu estudo, o texto não teatral é transformado com os recursos do teatro – com movimento, corpo, luz e som. E também com véu e água. A alma é como o corpo nu, é como um fundo preenchido por música? É escura como um véu ou como um palco? É clara como as luzes? É um movimento do véu em torno do corpo ou do corpo em torno do palco? É transparente como a água bebida invocando pedidos de repetição do texto? É como a palavra que se repete, que se repete, que se repete... sempre de uma forma diferente?

O texto é transformado no próprio palco. Recortado, recombinado. Platéia e atriz mudam o texto. E até meu estudo aparece em uma anedota sobre os que estudam e os que dormem. Pois há aqueles que são mais úteis e honestos dormindo do que estudando. Espero estar sendo, ao menos para mim, mais útil e honesta estudando.

Sobre A alma imoral, encenação de 25 de outubro de 2011 no Teatro Dulcina.


Paixões privadas – A arte europeia nas coleções particulares do Rio de Janeiro

Quando soube que havia uma exposição no Rio com um quadro de Bosch fiquei muito alegre. A primeira pintura que vi de Bosch foi A extração da pedra da loucura. Esse quadro tem duas inscrições em gótico. Ele fazia em alguns de seus trabalhos alusão a provérbios e ditos holandeses, transformando-os em temas poéticos. Depois, conheci Os sete pecados capitais (que muitos entendem como uma mandala), A nau dos loucos e A carroça de feno (O mundo é um monte de feno; todos pegam alguma coisa enquanto podem). Bosch é meu pintor preferido, dentro da pequena coleção dos que conheço obviamente, ao lado de Van Gogh. O título do quadro exposto no Rio é Cabeça de um executor.

Estou escrevendo tantos nomes de quadro porque estava pensando justamente sobre isso enquanto via as obras na exposição. Quanto mais nos aproximamos da época em que vivemos, mais os quadros vão sendo chamados de Sem título. Gosto de obras com títulos bem definidos porque o título é uma marca e indica, muitas vezes, a causa e o intuito de uma obra.

A exposição trata de coleções particulares de arte. Para o curador, o objetivo da mostra é incentivar o público a colecionar. Posso dizer que este blog é feito por colecionadores de livros. Mas fico pensando sobre o que de fato estamos colecionando em nossas vidas e o que acontece com essas coleções quando morremos.

Também é interessante pensar naquilo que motiva uma coleção. A causa pode ir desde o amor pela arte até o investimento financeiro. E a causa das coleções fica de certa forma marcada nos quadros.

Por último, gostaria de destacar o quadro Saída da aldeia. Fui para ver A cabeça de um executor, mas fiquei encantada com a Saída da aldeia.

Sobre a visita feita em 22 de outubro de 2011 no Centro Cultural Correios.


Literatura

Literatura – 1) Arte de compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou verso. 2) O conjunto de trabalhos literários de um país ou época. 3) Qualquer dos usos estéticos da linguagem. 4) Conjunto de conhecimentos relativos às obras ou aos autores literários. 5) Irrealidade, ficção. 6) Os homens de letras. 7) A vida literária. 8) A carreira das letras. 9) Bibliografia. (Adaptado do Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa).

Literatura – no século XIV leteradura e letradura/ do latim, litteratura/ -(d)ura ou -(t)ura: resultado ou instrumento da ação, noção coletiva/ littera – caráter de escritura. (Adaptado do Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa)

Litteraturaarte de escrever, escritura. (Adaptado do Dicionário Latino-Português).

Literatura – polimatia (instrução extensa e variada), leitura, cultura, estudo, talento, paixão pelas letras, pelos livros, bibliomania [em conhecimento]. Letras, belas-letras, a língua de Camões [em linguagem]. Prosa, poesia, ficção, não-ficção, contos, novelas, romances, crônicas, ensaios, fábulas [em artes]. (Adaptado do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa).

Continua lá em Letra


A dança de Feliciano

O que pode a dança? Pode a dança trazer fortuna, felicidade, abundância?
A dança pode.

A dança pode salvar uma alma espezinhada, uma personalidade diminuída ao extremo do ridículo de sua época. Pode salvar um fracassado (rs). Pode salvar do trabalho rotineiro, dos rotineiros hábitos, das habituais exigências em casa, fora de casa, das contas para pagar no fim do mês...

A dança cria ao mover o que é inerte.

Para morrer em vida se desperta para a vida ao se deparar com as contas no fim do mês. Para viver em vida se desperta para a vida ao se deparar com a morte. E nisso a redundância e a repetição são apenas aparentes.

É realmente uma tragédia essa vida... Todos os medos pulam em nossos olhos e tudo o que julgávamos tão importante cai por terra... E ainda rimos disso.

E o que se pode fazer é recomeçar. E de novo começar pela dança. Retomar a dança, dançando.

A dança de Feliciano, encenada em 14 de outubro no Rio de Janeiro (Fosfobox). Em cartaz até 15 de novembro de 2011. Recomendadíssima!!!


Hipóteses sobre a linguagem, a forma e a criação humanas

¿ O ser humano retira uma forma do caos através da linguagem.
¿ A forma é ilusória.
¿ A forma da linguagem é enfatizada no poema.
¿ O ser humano se recria através dessa linguagem.


Hipóteses sobre palavra e ideação

¿ A ideia desce gradativamente até a matéria.
¿ A ideia se converte em número.
¿ O número se converte em letra.
¿ As letras formam as palavras.


Hipóteses sobre as linguagens criadora e não criadora

¿ Existem as linguagens animal, espiritual e humana.
¿ A linguagem animal é a linguagem da vida.
¿ A linguagem espiritual é a linguagem da inteligência.
¿ A linguagem humana une vida e inteligência.
¿ A linguagem animal é inconsciente.
¿ A linguagem humana pode ser consciente.
¿ A linguagem espiritual é inteligente.
¿ A linguagem animal não é criadora.
¿ A linguagem espiritual é criadora.
¿ A linguagem humana pode ser criadora ou não.
¿ A linguagem humana não criadora vem do desejo.
¿ A linguagem humana criadora vem da vontade.


Aves de mau-agouro – desastre ambiental na Nova Zelândia

Nossas aves de mau-agouro são as silenciosas espécies mortas banhadas em óleo. As ondas pegajosas batendo na areia lembram o eco e a sombra dos voos que não existem mais.


Princípios de (uma) ciência nova (acerca da natureza das nações)

Ainda procurando saber para que serve a poesia, cheguei até Vico.  Ele escreve que o trabalho mais sublime da poesia é dar senso e paixão às coisas sem sentido. “A grande poesia deve cumprir a tarefa de inventar sublimes fábulas, adequadas ao entendimento popular, e comovê-lo ao máximo para atingir o fim que a si próprio se prefixou, qual o de ensinar o povo a agir virtuosamente.” Realmente penso que a poesia, se não explica o mundo para mim, pelo menos lhe dá sentido. Um sentido bem particular, é verdade, mas com a poesia não me sinto tão desnorteada. Um entendimento que independe de explicações, é verdade, mas não me sinto tão rodeada de absurdos.

Depois de ler Vico passei a considerar mais a etimologia como fonte de saber. “A mente humana inclina-se, mediante os sentidos, a fazer-se visível no corpo e, por meio da reflexão, a entender-se a si própria. Daí o princípio da etimologia, nas quais os vocábulos são transpostos dos corpos e das propriedades dos corpos para a significação das coisas da mente e do espírito”. Gostaria que isso transparecesse no blog. 

A leitura desse livro trouxe-me também a hipótese de que primeiro ocorreu falar em verso e, depois, em prosa. A primeira história pode ter sido a poética. Vico abriu para mim as possibilidades de uma sabedoria, uma lógica, uma moral, uma econômica, uma física, uma história, uma razão poética. Com isso, começou a deslocar a minha pergunta (para que serve), que estava muito próxima do fim, da finalidade, para uma pergunta mais próxima do começo – qual o verdadeiro princípio da poesia?


Fausto

Temos uma tradução do poema dramático Fausto, de Goethe.

O tradutor Agostinho D’Ornellas, no prefácio da segunda parte, escreve sobre o que é o Fausto: “... na frase de Madame de Stael [...] pode ser considerado na poesia o que é na ciência o cosmos de Alexandre de Humboldt, uma síntese do universo, um esforço prodigioso para resolver poeticamente o problema da existência e abranger, em elevadíssima unidade, o eu e o não-eu”.

Será possível usar a poesia como meio para se chegar a um conhecimento?

E sobre poemas escreve o seguinte: “Hoje [em 1873], muito outra é a maneira de avaliar, outras as condições de uma obra de arte, outras ainda as causas de nossas emoções e os princípios mesmos da ação que sobre nós exercem as criações da poesia. [...] O poema que preferimos é o que mais nos solicita o pensamento, o que mais ideias sugere, o que mais sentimentos desperta, que mais horizontes descobre e em nós acende aquela sede pelo inacessível, aquela aspiração para o desconhecido que é ao mesmo tempo a mais pungente dor e a mais inefável delícia que ao homem é dado gozar”.

Como o poema é avaliado hoje?




Morre Steve Jobs

“Filósofo, gênio, inventor”. Assim foi descrito Steve Jobs nos telejornais após sua morte. Quantos termos usados para qualificá-lo... Afinal, quem foi Steve Jobs?

Por filósofo, as pessoas se referem aos pensamentos expostos em suas apresentações, lições de carreira profissional e de vida. É claro, ser filósofo não é dizer frases de efeito. Mas a intenção de chamá-lo assim após sua morte é elogiá-lo. Por gênio, a intenção foi ressaltar a sua elevada capacidade intelectual de criação. E de inventor o chamaram pelo que fez dentro e fora da Apple. Seus produtos falam por si.

Por que, se foi ressaltada a qualidade das palavras de Steve Jobs e também seu gênio criador, não foi em momento algum utilizada a qualificação de poeta? O que diferencia a criação do inventor da criação do poeta?

Pode haver um poeta na área de informática assim como Einstein pode ser considerado um poeta na ciência ou Nietzsche um poeta na filosofia? Pode haver um espaço poético na tecnologia?


O sentir

Primeiro foi ouvir a música.

Paulinho da Viola:
“O poeta declina
Daquilo que ele não sente
E o silêncio é o peso que ele conduz.”
(em Quando o samba chama)


Depois, ler o poema e lembrar a música.

Goethe:
“FAUSTO. Se a fundo não sentis, jamais a tendes,
Se do íntimo d’alma vos não brota
E com espontânea, poderosa força,
Os corações não vence, dos ouvintes.
[...]
Mas corações não ganhareis vós nunca,
Se o próprio coração vos ficar mudo.”

(em Fausto)


Por fim, vincular a música e o poema ao que já conhecia. Claro, considerando o fingir como fingir mesmo. Moldar, fazer, criar um sentimento.

Fernando Pessoa (ele mesmo):
“[...] Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm. [...]”.
(em Autopsicografia)


E sempre estamos falando da mesma coisa, algo tido como essencial na poesia.

Como fala o coração? Fala com sentimentalismos, com a palavra de quem acha que sente? Como surge a consciência do que sentimos para então poder comunicá-la? E, por outro lado, como isso tudo é percebido e entendido hoje?

Para o poeta T. S. Elliot, “além da intenção específica que a poesia possa ter, como já citei nos vários tipos de poesia, há sempre a comunicação de alguma experiência nova, de algum entendimento novo do familiar, ou a expressão de alguma coisa que sentimos mas para a qual não temos palavras, que amplia nossa conscientização ou apura nossa sensibilidade. [...] Creio que todos entendem quer o tipo de prazer que a poesia pode dar, quer o tipo de diferença, além do prazer, que traz a nossas vidas. Sem produzir esses dois efeitos, simplesmente não há poesia” (em A essência da poesia).

Bem, esse é nosso aprendizado.


Erro

Lendo o fragmento

“Enquanto ele viver vida terrena
Não te é proibido exp’rimentá-lo.
Está sujeito a errar enquanto luta
O homem.”
            (o personagem O Senhor no poema Fausto, de Goethe),

acabei lembrando de algo que tinha escrito há algum tempo. Foi muito engraçado ter encontrado nas palavras do “Senhor”, algo que tinha mais a ver com Leminski. Assim escrevi:

ERRO

erro
mas não erro
duas vezes
não torno
o erro
um amigo

assim, cumpro
todas as metas
na vida, pois
vivo
mas não vivo
duas vezes

posto isto
tudo
de lado
partículas e genes
permaneço
um errante.
 


Confira Leminski lá: http://www.insite.com.br/rodrigo/poet/leminski/erra.html