Vi nascer um deus



Em novembro chegaram os signos.
O céu nebuloso não filtrava
estrelas anunciantes
nem os bronzes de São José junto ao Palácio Tiradentes
tangiam a Boa-Nova.
Eram outros os signos
e vinham na voz de iaras-propaganda
páginas inteiras de refrigerador e carro nacional
mas vinham.

[...]

Ó lapinha,
menino de barro,
deus de brinquedo,
areia branca de córrego,
musgo de penhasco,
Belém de papel,
primeira utopia,
primeira abordagem
de território místico,
primeiro tremor.
Onde, pouco importa.
Como, pouco importa.
Vi nascer um deus
em plena calçada
entre camelôs;
na vitrine da boutique
sorria ou chorava,
não sei bem ao certo;
a luz da boate
mal lhe debuxava
o mínimo perfil.
entre embaixadores
entre publicanos
entre verdureiros
entre mensalistas,
no Maracanã
em Para-lá-do-mapa,
quando os gatos rondam
a espinha da noite
os mendigos espreitam
os inferninhos
e no museu acordam as telas
informais
e o homem esquece
metade da ciência atômica:
vi nascer um deus.
O mais pobre,
o mais simples.

Carlos Drummond de Andrade, em Lição de Coisas. (Reunião – 10 livros de poesia)


A perda da visão poética 3




Venda


Vendasímbolo de cegueira quando a venda está colocada sobre os olhos. Têmis, deusa da justiça, tem os olhos vendados para mostrar que não favorece ninguém. Os olhos vendados de Eros significam que o amor fere cegamente. A deusa da Fortuna também tem os olhos vendados, pois a distribuição de riquezas é feita ao acaso. No plano esotérico, os olhos vendados têm o sentido de retiro interior, de contemplação. Os olhos estão fechados à cupidez e à curiosidade. A venda de tela fina das religiosas significa tanto a cegueira que elas devem ter diante do mundo quanto a atitude de meditação e de concentração espiritual. (Adaptado do Dicionário de Símbolos)

TêmisEra a deusa das leis eternas. De seu casamento com Zeus, nasceram as três Horas, as três Moiras e a virgem Astréia (a justiça personificada). Às vezes Têmis aparece como conselheira de Zeus. Atribuía-se-lhe também a invenção dos oráculos e das leis. Ela teria ensinado a Apolo a arte da adivinhação. (Adaptado do Dicionário de Mitologia Grega e Romana)

Eros – Eros, o amor, aparece como oriundo do Caos inicial e cultuado sob a forma de uma pedra ou então nascido do ovo primordial engendrado pela Noite. É uma força preponderante na ordem do universo, responsável pela perenidade das espécies e pela harmonia do próprio Cosmos. No entanto, a versão mais difundida é a de que ele seria filho de Afrodite e de Hermes. Mencionava-se ainda o Eros dos escultores e dos poetas. Seu poder era irresistível e a ele se dobravam os mortais, os heróis e os próprios deuses, todos sujeitos a suas flechas certeiras. (idem)

Fortuna“A deusa que traz”, uma divindade italiana representada portando uma cornucópia e um timão para simbolizar que ela dirigia a vida humana. (idem)

Venda – Obscurecimento, escuridão, trevas, privação da vista, ter névoas nos olhos, ter os olhos vendados, deixar de ver, fechar os olhos ao mundo, ter poeira nos olhos, vendar os olhos [em cegueira]. Vazão, saída, extração, fornecimento, alienação, venda a retalho, leilão [em venda]. Ocupação, negócio, agenda, obrigação, comércio, indústria, custo, lucro, otimização, estratégia, estímulo, participação, cronograma, orçamento [em trabalho]. Transferência, doação, repasse, troca, sucessão [em transmissão de propriedade]. Câmbio, operação, barganha, especulação, espírito mercantil [em permuta]. Feira, bazar, alfândega, loja, vitrina, internet, e-commerce, bolsa de valores, fundo de investimento [em mercado]. Bar, botequim, tasca, tenda, vendinha, boteco, pub [em embriaguez]. Véu, máscara, solidão, mutismo, silêncio, sonegar, pôr longe das visitas, fechar à chave, ocultar à observação, calar-se, deixar nas trevas da ignorância, enganar, disfarçar a marca de origem, eclipsar-se [em desinformação]. (Adaptado do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa)

Venda – do germânico Binda, do alemão Binde (século XVII): faixa, tira. Venda – Vender, trocar por dinheiro (século XIII), do latim Vendere. Vendado latim Vendita, particípio passado de Vendere. (Adaptado do Dicionário Etimológico e do Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa)

Vendere – vender. Venditoostentar, mostrar, apregoar, gabar, fazer valer. (Adaptado do Dicionário Latino-Português)

Vendatira de pano com que se cobrem os olhos. VendaAto ou efeito de vender, vendagem, vendição. Vendagem – porcentagem do preço da venda em favor daquele que vende por conta alheia. Vendagem – operação de vendar (os olhos). (Adaptado do Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa)


Visões do Verbo

¿  A verdade é a vida.
¿  A vida se prova pelo movimento.
¿  Verbo é a potência inteligente que age no movimento universal.
¿  Para Deus, falar é fazer (assim também deveria ser entre os homens).
¿  A verdadeira palavra é a semente das ações.
¿  O Verbo é a palavra cheia e fecunda.

E. Lévi


Compras de Natal


Compras de Natal

A cidade deseja ser diferente, escapar às suas fatalidades. Enche-se de brilhos e cores; sinos que não tocam, balões que não sobem, anjos e santos que não se movem, estrelas que jamais estiveram no céu.

As lojas querem ser diferentes, fugir à realidade do ano inteiro: enfeitam-se com fitas e flores, neve de algodão de vidro, fios de ouro e prata, cetins, luzes, todas as coisas que possam representar beleza e excelência.

Tudo isso para celebrar um Meninozinho envolto em pobres panos, deitado numas palhas, há cerca de dois mil anos, num abrigo de animais, em Belém.

Todos vamos comprar presentes para os amigos e parentes, grandes e pequenos, e gastaremos, nessa dedicação sublime, até o último centavo, o que hoje em dia quer dizer a última nota de cem cruzeiros, pois, na loucura do regozijo unânime, nem um prendedor de roupa na corda pode custar menos do que isso.

Grandes e pequenos, parentes e amigos são todos de gosto bizarro e extremamente suscetíveis. Também eles conhecem todas as lojas e seus preços — e, nestes dias, a arte de comprar se reveste de exigências particularmente difíceis. Não poderemos adquirir a primeira coisa que se ofereça à nossa vista: seria uma vulgaridade. Teremos de descobrir o imprevisto, o incognoscível, o transcendente. Não devemos também oferecer nada de essencialmente necessário ou útil, pois a graça destes presentes parece consistir na sua desnecessidade e inutilidade. Ninguém oferecerá, por exemplo, um quilo (ou mesmo um saco) de arroz ou feijão para a insidiosa fome que se alastra por estes nossos campos de batalha; ninguém ousará comprar uma boa caixa de sabonetes desodorantes para o suor da testa com que — especialmente neste verão — teremos de conquistar o pão de cada dia. Não: presente é presente, isto é, um objeto extremamente raro e caro, que não sirva a bem dizer para coisa alguma.

Por isso é que os lojistas, num louvável esforço de imaginação, organizam suas sugestões para os compradores, valendo-se de recursos que são a própria imagem da ilusão. Numa grande caixa de plástico transparente (que não serve para nada), repleta de fitas de papel celofane (que para nada servem), coloca-se um sabonete em forma de flor (que nem se possa guardar como flor nem usar como sabonete), e cobra-se pelo adorável conjunto o preço de uma cesta de rosas. Todos ficamos extremamente felizes!

São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes, os estojos, os papéis de embrulho com desenhos inesperados, os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos parentes e amigos. Pagamos por essa graça delicada da ilusão. E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias. Durável — apenas o Meninozinho nas suas palhas, a olhar para este mundo.

Cecília Meireles, em Quatro Vozes (Fonte: www.releituras.com)


Solstício de verão


Um exercício poético sobre as águas para marcar o solstício de verão:


AS ÁGUAS

A mãe é todas as águas do filho.
O filho é todas as águas da mãe.

1.
Saí do ventre materno, e para lá retornarei.
Para lá retornarei. Para lá retornarei.

Retornarei, é certo.
Como tantas vezes tornei a voltar,
para lá retornarei.

2.
Sem medo mergulhei
nesse imenso oceano
de leite em que me banhavas,
em teu leite de jasmim, teu mel.

Pudesse retornar
às toalhas quentes dos dias de verão.
Pudesse retornar às banheiras daqueles dias.

3.
Tuas lágrimas de orvalho matinal
serenavam em mim.
Eu ria desta seiva de licor doloroso
consolando-te –
             era tua medula meu alimento.

Pudesse retornar
às risadas que não entendia.
Pudesse retornar ao colo leve das manhãs.

4.
Lá, nas águas calmas de meu íntimo balneário,
tão familiar, lá pelas orlas do teu seio,
nadei entre as pias batismais, entre os cálices medicinais,
nadei, nadei, pelas luas todas – mas não lembro.

Pudesse retornar
ao recôndito, a esse inextricável cofre.
Pudesse retornar ao mistério.

5.
Todo o calor do teu suor florescia tempestades.
Eu germinava. E sabia correr na chuva,
pisar forte nas poças, ficar descalço nas ruas.
Germinava –
como um cântaro sem margens transborda
de tanto derramares teu vasto céu.
Minha seca saliva eram as taças por ti brindadas.
E me juraste brindar ao sabor desta vida.

Pudesse retornar
minha vida a teu relicário.

Pudesse a vida, minha vida,
ser um rio sereno de tua cachoeira.
Pudessem tuas invisíveis cataratas,
a tua ainda que distante tromba d´água,
pudesse eu viver sempre em tua maré cheia.

Pudesse ainda no fim da escadaria
olhar lá de cima
e reencontrar o claustro materno.

6.
Retornaremos ao mar, Mãe, ao nosso ventre materno,
ao olhar de Maria, Mãe, ao dilúvio, à maré divina,
ao mar retornaremos, eu e tu, Mãe, retornaremos.

Para lá retornaremos, é certo.
Para lá retornaremos. Para lá retornaremos
                                                – mas quando?




Visões da unidade de linguagem


¿  A unidade de linguagem do pensamento são os sinais.
¿  A unidade de linguagem da intuição são os símbolos.




Que é a Arte?


“Que papel – pergunta-se – pode desempenhar no espírito do homem um mundo de meras imagens, sem valor filosófico, histórico, religioso e científico e até sem valor moral e hedonista? Que coisa existe de mais inútil do que sonhar na vida com os olhos abertos, quando na vida se requer não somente olhos abertos, mas a mente aberta e o espírito perspicaz? As imagens puras! O fato de simplesmente nutrir o espírito com puras imagens tem uma denominação pouco honrosa: chama-se fantasiar, que possui também, como inevitável sequela, o epíteto de ocioso, algo bastante inconclusivo e insípido de qualquer forma. Mas, será tudo isto a arte? (Livre Tradução)

O que é a Arte?, de Benedetto Croce.


Dodecadia, dodecahora



Man says: Time passes
 Time says: Man passes

Depois de estabelecido o marco para que pudéssemos contar nossos giros, mil giros se passaram. E mais mil. E mais doze. Giramos duas mil e doze vezes em torno de nosso sol.

Depois de estabelecida a divisão de nosso giro em torno de nosso sol em doze partes, contamos a décima segunda parte, a última parte do último giro em torno de nosso sol.

Depois de contada a última parte deste último giro, contamos também os giros em torno de nós mesmos. Metade deste giro estamos voltados para a luz, metade para a sombra. E dividimos cada metade em doze partes.

Depois de contados os doze giros em torno de nós mesmos e as doze partes em que estamos voltados para a luz, chegamos a este instante que se formou: às 12 horas e 12 minutos do dia 12 do mês 12 do ano 2012.

Este instante é como um verso dodecassílabo, é como um zodíaco, é como um conjunto de discípulos, é como um dodecaedro, é como tudo que é símbolo e que é feito de doze. Este instante é como todo o tempo e todo o espaço do nosso universo. Existente para nós não porque giramos, mas porque é por nós dividido e contado (somente depois de estabelecido o marco).

Possamos passar por esse instante formado de giros, divisões e contas conscientes de que toda data é um movimento.

Aquele instante foi um movimento que já passou.


Outra rubaía




Que proveito houve
em nossa vinda?
Que benefícios
nos trará a partida?

Nunca se esfacelará,
no transcorrer da nossa vida,
essa pobre urdidura de esperanças?

A esfera que habitamos,
este mundo que é nosso
contém
a imensa teoria dos vivos
que dia a dia flamejam
e depois se transformam em cinza.
Onde se esconderá
o fumo dessa combustão?



Fragmentação


SER FRAGMENTO, NÃO FRAGMENTADO.


Reintrodução ao Casamento de Juno


O amor de agora é o mesmo amor de outrora
Em que concentro o espírito abstraído [...]

Dante Milano

O signo da cidade


Cada janela no prédio – uma tessela.

Cada carro no trânsito – uma tessela.

Cada pessoa na rua – uma tessela.

No entanto, a cidade é um mosaico que nunca conseguimos ver porque vivemos fragmentados.

Por que acreditamos que nossos problemas nos unirão? Que nossa violência, nosso preconceito, nossa poluição (sonora, visual, do ar), nossa falta (de saúde, educação, emprego), nosso divórcio, nosso desejo, nossa vantagem nos unirá?

Problemas não podem nos unir. Não podemos ser unidos pelos problemas.

Já estamos unidos pelo mistério! O mistério é já estarmos unidos. Unidos sob as mesmas estrelas – tesselas de nosso destino.

A cidade é um mosaico, um grande mosaico de luzes – de janelas acesas, de faróis, de estrelas, de destinos, de pessoas.


¿ !


Filme – O signo da cidade
Direção – Carlos Alberto Riccelli
Roteiro – Bruna Lombardi
Brasil/ 2007


Visões dos campos de estudo


¿  Os campos de estudo do pensamento são o conteúdo e os pormenores do sistema total.
¿  Os campos de estudo da intuição são o sistema total e a forma e padrão do todo.




Lições de cousas



Esta é parte da capa do livro Lições de Cousas do Dr. Saffray. Foi retirado de uma prateleira de uma casa em Angra dos Reis por uma adolescente de quatorze anos que passava o feriadão de Finados lá. A ela, chamou-lhe a atenção o fato de se tratar de um livro de 1908.

Ela mostrou o livro a um professor da escola. A ele, chamou-lhe a atenção o fato de o livro ter sido usado pelas classes de instrução primária.

E ela mostrou o livro para o blogue. A nós, chamou-nos a atenção o ensino intuitivo, a dedicatória, a ortografia. Vejamos uma parte:


Este livro é destinado a recordar-vos, sob a fórma de conversa, os pontos essenciaes das lições que vos fôram ensinadas pelos vossos professores. [...] Lêde, sobretudo, cada uma d’estas paginas com a maxima attenção. [...] Se algum ponto vos parecer obscuro, procurae esclarecêl-o vós mesmos, pela reminiscencia e pelo raciocinio. Se o não conseguirdes, então pedi a alguem que vos explique.”

O livro começa com lições sobre astronomia e termina com lições sobre o próprio material do estudante – a caneta, o papel, o livro.


Retornar


DO TÍTULO AO PONTO FINAL – O ETERNO RETORNO.


Lição de coisas

Continuando a lição intuitiva...


III

Bem te conheço, voz dispersa
                                               nas quebradas,
Que seria delas sem o apelo
                                               à existência,
e quantas feneceram em sigilo
                                               se a essência
é o nome, segredo egípcio que recolho
para gerir o mundo no meu verso?
para viver eu mesmo de palavra?
para vos ressuscitar a todos, mortos
esvaídos no espaço, nos compêndios?

V

Tudo é teu, que enuncias. Toda forma
nasce uma segunda vez e torna
infinitamente a nascer. O pó das coisas
ainda é um nascer em que bailam mésons.
E a palavra, um ser
esquecido de quem o criou; flutua,
reparte-se em signos – Pedro, Minas Gerais, beneditino
para incluir-se no semblante do mundo.
O nome é bem mais do que nome: o além-da-coisa,
coisa livre de coisa, circulando.
E a terra, palavra espacial, tatuada de sonhos,
cálculos.

Carlos Drummond de Andrade em Reunião: 10 livros de poesia


Visões da orientação


¿  A orientação do pensamento é o problema.
¿  A orientação da intuição é o mistério.




Poemas com destino certo


À palavra, aos poetas, aos leitores,
aos nômades, aos artistas anônimos,
às crianças infortunadas, às vítimas de guerra,
ao doente mental, ao doente terminal,
aos ateus, a alguns líderes religiosos,
aos governantes, aos habitantes da Terra,
aos jovens, aos velhos, às mentalidades acadêmicas
às mulheres, às bailarinas, aos circenses,
aos sagitarianos, ao andarilho,
às nossas avós,
aos espíritos conturbados,
aos espíritos amorosos:

O texto acima, que parece um poema, é somente o índice da segunda parte do livro Poemas com destino certo, de Cristina da Costa Pereira. Apesar da aparente fragmentação, seus poemas-dedicatórias têm sempre um único destino – o coração humano. No prefácio, Sérgio Bernardo ressalta que o que está fora do homem (o mercado, a mídia, os eventos) não é endereço para as mensagens de Cristina.

Recitamos, então, o poema que encontra seu destino em Nossos Estudos Poéticos:

Aos leitores

Um livro de poemas sempre buscará um leitor.
Em algum lugar, o aguarda
em imagens fragmentadas e advérbios deslocados,
desejando que alguém perceba
que estava ali.

soltando as asas dos pensamentos.
Uma história, a sonoridade das palavras transmite.

Algo abstrato se desvenda
- um cheiro, um olhar, um sentimento
capturado no papel.

As atrocidades do mundo
o ocultismo de tradições ancestrais
o enigma do universo indecifrável
parecem não ter lugar nos poemas.
Mas, em um poema, todas as coisas cabem.