Ensaio sobre a lucidez

Por que está a fazer isto por nós, por que nos ajuda, Simplesmente por causa de uma pequena frase que encontrei num livro, há muitos anos, e de que me tinha esquecido, mas que me regressou à memória num destes dias, Que frase, Nascemos, e nesse momento é como se tivéssemos firmado um pacto para toda a vida, mas o dia pode chegar em que nos perguntemos Quem assinou isto por mim,


O que  é o voto em branco? Um direito, uma manifestação em silêncio, algo que torna o sistema democrático ingovernável, atingindo o coração da democracia como nenhum sistema totalitário pode fazer, uma renúncia, uma desilusão, uma cegueira, uma lucidez?

Lemos em Nossos Estudos Poéticos o Ensaio sobre a lucidez de José Saramago a fim de completar a nossa téssera. A leitura nos permitiu observar vários aspectos do voto em branco. Debruçamo-nos sobre alguns neste post e os ampliamos através dos links.

O que é um direito? É uma questão de mérito? Nossos direitos são realmente nossos? Os momentos de crise são aqueles em que nossos direitos não são respeitados? Como um direito não respeitado pode existir? Encontramos em nossa leitura que um direito só existe em potência no dever de que seja respeitado e cumprido. Encontramos também que um direito só existe no papel. Os direitos só o são integralmente nas palavras com que tenham sido enunciados e no pedaço de papel em que hajam sido consignados. A sua aplicação inconsiderada convulsionaria a sociedade.

Consideremos uma eleição em que a quantidade de votos em branco seja superior a 80%. O que faz o governo diante disso? Ele toma as devidas providências. Primeiro cria um paradoxo, considerando que houve um uso legal abusivo do direito do voto em branco. Depois, recorre a espionagem e interrogatório a fim de descobrir os envolvidos no uso abusivo. Falhando, declara que a capital (onde ocorreu a maioria dos votos em branco) encontra-se em estado de sítio. O governo se retira da capital e o exército a cerca. Cogita-se como próximo passo a construção de um muro que a separe do restante do país. Finalmente haverá mudanças na lei eleitoral: o voto em branco passa a equivaler ao voto nulo ou não há mais voto em branco ou distribuem-se igualmente os votos em branco por todos os partidos ou sei lá que mais. Paralelamente às estratégias oficiais, temos atentados e saques forjados, sabotagens, falsificações...

A ação das autoridades também se dá através da palavra. Procura-se primeiro um adjetivo que possa desqualificar os que votaram em branco – indisciplinados, rebeldes, conspiradores, subversivos, desertores, perversos, diabólicos, inimigos, terroristas. Eis que alguém consegue substantivá-los: são os brancosos.

Os ministros exercem seu poder por meio dos discursos dos redatores de gabinete. Estes são mestres na arte do convencimento, a arte de fazer com que a verdade coincida com a mentira. Comparam-se os votos em branco com a cegueira branca. A questão política dos brancosos é uma questão de saúde. A mídia realiza o seu trabalho de intoxicação. Impressiona-se o público com uma doença, ou melhor ainda, com uma epidemia. Deixando-se enganar, a população é convencida de que corre o risco de estar novamente cega.

Em meio ao paradoxo, à mentira e à cegueira, encontramos a organização da população da capital. Encontramos casos admiráveis de renúncia, “daqueles que ainda nos permitem pensar que se perseverarmos nesses e noutros gestos de meritória abnegação, acabamos por cumprir com acrescimentos a nossa pequena parte no projeto monumental da criação”, escreve o autor. Encontramos pessoas que varreram calçadas quando não havia instituições oficiais para realizar a limpeza das ruas; pessoas que choraram os mortos desconhecidos; pessoas lúcidas que pediram demissão, apesar da família, da carreira, da vida; encontramos os mais nobres exemplos da história do amor ao próximo – cada um decidindo por sua conta e a sós com sua consciência. Encontramos uma organização que se sustenta com a lucidez.

O Ensaio sobre a lucidez ainda não virou filme.


Essas palavras, que, provavelmente, tal como se apresentam, ninguém as haveria dito antes, essas palavras tiveram a sorte de não se perderem umas das outras, tiveram quem as juntasse, quem sabe se o mundo não seria um pouco mais decente se soubéssemos como reunir umas quantas palavras que andam por aí soltas,