Mangifera indica - O movimento das árvores ou Um ano e um dia

           (2010-2011)


“Trouxe um menino.
Apanhei-o no bazar de ouro e prata,
Onde as jóias são como as folhas de mangueiras:
Milhares, milhares.”
(Cecília Meireles – Menino/ Poemas escritos na Índia).

Nulla dies sine linea
(Plínio, o moço; Apeles)

“Sequer um dia sem uma linha.”
(Gavarni citado por Vincent Van Gogh – Cartas a Theo).

“Nenhum dia sem linha...”
(Álvaro de Campos – Apostila)

Olhando a árvore pela janela:
a última gota de chuva estremece as folhas
rompendo a imagem de um instante
Voam da mangueira
rolinhas, sebinhos e beija-flores
Hoje é dia da árvore nos calendários
avança a árvore um quadrante
No sul, é o equinócio de primavera
no ar, há mais pássaros que folhas
na árvore, há o verde
das folhas e das seis mangas já grandes

Olhando as palavras pelo dicionário:
da raiz vinda do latim arbos
desenvolve-se o vegetal cujo tronco dá ramos no alto
do que antecede e do que procede
A árvore dos galhos, dos ramos, dos frutos e das sementes
A árvore da sementeira, da raiz e do tronco
A linhagem dos antigos aos herdeiros
causa e efeito alinhados
num signo que é presença
Da família das Anacardiáceas
estrangeira entre as aroeiras
os cajus e os cajás
Anacardiácea
Semelhante a um coração que se eleva
13/10   Semelhante a um coração que se inverte
Semelhante a um coração que se repete
Semelhante a um coração que se assemelha
Do radical
deriva o prefixo
A mangueira
é a árvore da manga
A manga
é o fruto da mangueira
De derivação em derivação
move-se a árvore
arvorecendo famílias de palavras
Por entre o tâmil e o malaiala
por entre o português e o latim
ao longo do tempo dos caminhos linguísticos
De onde vêm os nomes?
Que movimentos formam na realidade as palavras?

Olhando a árvore pela janela:
no dia de finados
os corações defuntos não amadurecidos
arrancados pela tempestade passada
já haviam sido colhidos do chão
E o verde da copa alaranjado
e o réquiem pela cigarra cantado
recolhiam o fim de um feriado prolongado

Olhando as figuras pela palavra, pelo pensamento, pela construção:
é esta mangueira todas as mangueiras e todas as árvores
são todas as árvores a incorporação do movimento
13/11   de gradação em gradação
move-se a árvore
da sementeira à raiz, da raiz ao tronco
dos galhos aos ramos, dos ramos aos frutos, dos frutos às sementes
até que as raízes se configurem como pés firmes
e os galhos como braços que buscam
e os homens, que veem seus pés e seus braços,
ouvem também suas vozes, seus cantos, seus choros
Por que quer o homem personificar a árvore
seguindo seu caminho tão desarvorado?

Olhando a árvore pela janela:
Movem-se reticentes
sete... oito... nove...
sementes crescentes

Olhando a figura pelo poema:
“Olha antes a semente (...)
vê através do pequeno embrião de árvore”
“As árvores e os homens se confundem (...)
(...) os poetas foram árvores!”
“Uma velha mangueira comovida,
deita no chão maldito a sombra boa.”
“No galho das mangueiras
o vento canta.”
“Quando galhos prolongo, entendo o meu destino”
“E, quando os ventos rugem nos espaços,
os seus galhos se torcem como braços
de escravos vergastados pelos ventos”
13/12  “A planta é um corpo de que o vento é a alma”
“Que o vento vai levar rumo diverso,
do último galho e do último soneto
a última folha e o derradeiro verso”
“O vento é o mesmo:
mas sua resposta é diferente em cada folha
somente a árvore seca fica imóvel”

Olhando a árvore pela janela:
Anteontem na noite do eclipse lunar
anteontem na noite do solstício de verão
eu ouvi não a voz das árvores
eu ouvi a voz dos poetas
conversando em uma língua muito antiga
Uma língua da época em que as palavras
ainda não haviam deixado de ser parábolas

Olhando a poesia pela árvore:
recitaram um verso regressivo
e fogos se moveram sobre a face das águas
luzes e estrelas
anjos e sinos
(que um dia foram símbolos)
amanhã serão todos guardados
ao se desmontar a árvore de natal
Alguém disse que ele disse
que pelo fruto
pode-se conhecer a árvore
querendo dizer
que a boca fala
do que se tem no coração
13/01  querendo dizer
que o bom homem
retira o que é bom
do seu bom tesouro
Retirados os enfeites
restará tão somente
o santo lenho
da árvore da infâmia
É Flora quem preside
a floração dessas árvores
da nova aliança
dessas duas árvores que são uma?
É ela quem simboliza de flores
a antiga aliança
da vida e do conhecimento?
São suas as flores caídas
avistadas por Odin dependurado?
Odin dependurado
raízes nas alturas
ramos para baixo
árvore humana
desdobrando-se
desdobrando-se
pelo mundo criado

Olhando a árvore pela janela:
inúmeras, incontáveis, incalculáveis mangas
verde, amarela, laranja, vermelha
rosa, violeta, púrpura e roxa
13/02   Rosa, espada, tommy, menina
carlota, palmer e coração de boi